Bom dia, camarada. Neste boletim (ainda estou buscando um nome melhor) te ofereço uma aventura pelo emaranhado de najas fofinhas de Brasília que é a minha memória, levando em consideração que eu não lembro de nada muito bem.
O primeira vez que tive o contato com algo que eu identifiquei como arte conscientemente foi o azulejo do banheiro da minha avó. Os azulejos eram todos de uma cor de azulejo de banheiro mas em um padrão de espaço alguns deles eram pintados de azul com uma varanda cheia de plantas ou uma mesa cheia de frutas. A varandinha com pérgula, quase um jardim de inverno, fazia até sentido no contexto arquiteto-geográfico da casa, mas quem é que gostaria de obrar observando uma cesta de frutas pintada naquela louça? Reparei isso em intervalos de leitura dos itens com os quais o xampu era feito. Lauril Éter Sulfato de Sódio, Cocamidopropil Betaína e Cocamide Dea. Me desculpe, pulamos de questões artísticas para alquímicas rápido demais, passando por uma escatologia branda para a qual não desejo voltar nunca nesta (ou em qualquer outra) carta. Sempre rio do fato de escatologia poder significar ao mesmo tempo de cocô e fim do mundo. Espero que não seja um presságio (apesar do adiantado estado em direção de ambos partindo do gabinete presidencial brasileiro).
Mas eu falava dos azulejos de banheiro da minha avó, primeira peça de que me dei conta sozinho que era arte. Era isso e pano de prato. Lá em casa não éramos adeptos do smilinguido, as mensagens religiosas dos panos de prato eram escritas à mão por minha tia-avó Luzia Aldira em aulas que ela ministrava o Clubinho de Senhoras da Paróquia São João Batista. Tia Aldira também escrevia com letras bonitas os nomes das matérias na primeira página dos cadernos de meus primos e meus também.
Ontem estava ouvindo o podcast Não Pod Tocar num episódio em que eles contam a história da natureza morta, sua origem e importância para a arte. Derivei do lavabo de vovó para chegar aqui principalmente, com o assunto primaz desta correspondência. De acordo com a Fabiana no podcast supracitado, a natureza morta retrata principalmente objetos inanimados, banquetes decorados e cestas de frutas, aspectos triviais, coisas completamente sem importância aparecem de forma substancial nesse tipo de obra. Uma fruta que caiu no chão, um resto de comida. Eu não entendo nada de arte, mas acho que é isso que tia Aldira fazia nos panos de prato.

(Imagem meramente ilustrativa)
Eu não sou o mais capacitado para falar sobre isso, talvez a @nuvemtrincada possa ajudar, mas li em algum lugar que a frequência da temática CAVEIRA era aplicada com abundância principalmente em quadros que retratavam jovens. Frutas podres e comidas estragadas também são tema recorrente. Li nesse lugar que isso era pra lembrar que a vida teria um fim. Que a juventude não é pra sempre. Peço desculpas pelas elocubrações, acho que as caveiras e ceifadores e cavalos fantasmas curiosamente não tem muito a ver com a natureza morta.
A convivência com o fim é algo normal para mim. Convivi com ele muito mais que gostaria e com a possibilidade da morte iminente de várias pessoas importantes que já morreram. A última delas foi tia Aldira. Ela já tinha uma idade avançada, mas depois que começou a sentir dores nas pernas, parou de ir ao clubinho, foi parando devagarzinho de bordar e pintar, depois ficou de cama até que morreu. Pouco antes dela morrer a visitei e ela, já sem entender o mundo em que estava, cantou aquela música da Índia com cabelos nos ombros caídos negros como a noite que não tem luar. Chorei nesse dia mas tentei disfarçar.
A arte pra mim significa muita coisa, mas eu estou sempre buscando nela esse ponto meio soturno da iminência da morte. Talvez eu viva buscando isso fora da arte também. Percebi isso quando me peguei lendo uma excelente reportagem sobre o ritual funeral de uma tribo indígena de pouco contato com o mundo externo no Amazonas, divisa do Brasil com o Peru.
Penso muito nos trabalhadores da morte também. Eu assistia aquele seriado Six Feet Under nas madrugadas do SBT (eu era uma criança muito estranha que acordava de madrugada sempre). Eu já tinha ido a um velório na vida, não me lembro quantos anos tinha. Um tio de um amigo muito próximo era motorista do popular rabecão e ele contava histórias morrendo de rir da vez que sentiu uma mão gelada no ombro ao carregar um corpo de noite. Pura palhaçada para assustar criança. Mas além de me assustar um pouquinho, me fascinava essa proximidade.
Ao tentar resolver os trâmites para a liberação do corpo do meu pai, que eu não via há 20 anos, um dos profissionais da morte, um também motorista de carros de funerária, comentou que meu pai devia beber muito porque ele tinha percebido detalhes dos quais pouparei minhas nobres companhias nesta correspondência. Fiquei um pouco chocado com a insensibilidade com a qual ele tratou uma informação sobre um possível ente querido de alguém (não meu, felizmente). Fiquei imaginando como eu reagiria se fosse uma pessoa pela qual eu nutrisse qualquer sentimento. Batatinha era o nome desse motorista meio despachante do finamento. Uma espécie de Caronte moderno no seu moderno barco-caravan (não era uma caravan mas vamos deixar este modelo mais romântico de carro de funerária registrado aqui). Será que o contato com a morte o tempo todo faz a gente ficar assim?
A insensibilidade de Batatinha na ocasião me assombra em momentos de pandemia. Afinal nos tornamos todos um pouco observadores dessa grande Saveiro adaptada para funerária que se tornou o mundo. Quando vemos números no noticiário nos habituamos às muitas casas decimais e esquecemos que aquelas eram todas vidas, como a de tia Aldira, que não morreu de Covid, e do meu pai, cuja morte não me era nada além de um grande problema burocrático.

(Acima deixo a belíssima imagem de uma Caravan preparada para serviços funerários. A foto foi copiada do fórum Opaleiros do Paraná. Essa imagem me faz pensar tanto na infinitude da morte quanto na beleza da vida e das coisas simples da vida. A Caravan preparada para serviços funerários é a natureza morta 4.1 seis cilindros. É o pano de prato dos carros. É a música do Sufjan Stevens automotiva).
Eu sei, interlocutor, estou me perdendo nos pensamentos, até tinha mais algumas coisas para falar sobre apps de yoga para fazer exercícios em casa, mas vou deixar para outro momento não pelo cansaço deste pobre estafeta, mas para economizar também sua paciência.
Gato com Chapéu de Alumínio
Eu acho que não seria desengano dizer que essa newsletter é também uma espécie de spin-off do podcast que apresento semanalmente com minha amiga artista Leila Kelly.
Saiu hoje e está fresquinho mais um episódio do nosso humilde podcastinho, disponível em todas as plataformas agregadoras, mas vou deixar uma listinha com os links aqui caso você queira apenas clicar. No episódio desta terça-feira lembramos de coisas, nos reconhecemos nos esquecimentos e falamos de memória.
Fiquem a vontade para responderem a este e-mail. Recebo respostas com grande carinho e todas elas alegram meu coração. Se você gosta dos assuntos tratados aqui ou pelo menos da forma como eles são tratados, cogite compartilhar essa correspondência com um amigo. Se você chegou aqui através de um amigo ou link, que tal se inscrever para receber sempre este conteúdo completamente sem compromisso com feitura de qualquer sentido?
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A presente epístola foi escrita durante as noites dos dias 12 e 13 de julho sob efeito de uma bebida alcoólica artesanal de gengibre produzida em Cariacica Sede. Eu sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.
Adoro a forma como você escreve de forma fácil quase difícil sobre o cotidiano que ninguém viu, ou quer ver.
Só sucesso!