Olá, navegantes! Espero que estejam todos bem e saudáveis.
Por aqui voltei ao trabalho presencial (em revezamento), então somando deslocamento e outras obrigações esta newsletter (sério, nenhum de vocês tem um nome melhor para isso?) chega mais uma vez em avançado horário nas caixas de e-mail de quem me oferece tão carinhosamente a atenção de lê-la. Por isso, peço desculpas. Já há tempo separei alguns assuntos para tratar por aqui. Um deles diz respeito ao Centro Histórico Eduartino Silva, antiga prefeitura de Cariacica, cidade na região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo. O Centro Histórico divide paredes com o quintal da casa da minha avó, onde morei por muitos anos e local que ainda me refiro como “minha casa” em algumas oportunidades. O Centro Histórico era conhecido por mim e pelas pessoas da minha idade como “A Biblioteca”, simplesmente porque funcionava como uma. Não lembro de outra atividade lá que não a de biblioteca e de local para ensaio do Coral São João Batista, da igreja que fica no meio da praça em frente. Fiz todo esse contexto geográfico para dizer que quando não estava assistindo desenhos japoneses de qualidade no mínimo questionável, eu ia para lá escarafunchar os livros perdidos pelas estantes cinzas de repartição pública. Tudo na biblioteca parecia improvisado, inclusive os livros, velhos e esgarçados, com as lombadas todas puídas. De ficção lembro só de dois exemplares da Série Vaga-Lume (O Mistério do Cinco Estrelas e O Escaravelho do Diabo). O que eu mais lia era qualquer volume da Barsa. Acho que a maior parte dos que me leem saberão o que é, mas contextualizo também para fins de alongar nossa correspondência. Era um monte de volumes de capa dura vermelha com todo o conhecimento que existia no mundo até então. Pelo menos era o que eu-menino achava. Achava não, eu tinha certeza. Dúvidas fui aprender a ter depois. Lia com vontade tudo que estivesse escrito ali e me sentia acessando um conhecimento ancestral com aquelas letras miúdas e um bocado de ilustrações bonitas. Quase um monge copista. Por ali comecei a conhecer mundos completamente diferentes. Mundos que só existiam à distância. Mundos que eu só via por uma tela meio quadrada de catorze polegadas e botõezinhos para trocar de canal. Para carregar a alegoria com ainda mais romantismo da vida do pobre dos anos 90, também tinha palha de aço na antena e uns quatro botões diferentes afundados. Mas eu também acabava conhecendo lugares que nem nas mais exóticas produções do Globo Repórter eu poderia conhecer, locais distanciados da possibilidade de existência praquela criança que habitava a memória de uma cidade. Tipo a Bulgária, sei lá.
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Uma vez um tio-avô levou um computador velho do escritório dele lá pra casa. “Pra criança estudar”, eu acho que era a intenção dele. Depois de instalado o computador num quarto na garagem entre bicicletas e brinquedos dos meus primos, eu me encantava com um joguinho precário, mas muito bonito. Eu digo precário porque “Where in the World is Carmen Sandiego?” é um jogo de computador produzido inicialmente em versão para Apple II no meio da década de 1980. O som saía direto das entranhas do computador e tudo aquilo era muito mágico. O tinha fugido para um país cuja capital era Rabat, mas a cidade mais conhecida tinha nome de filme e a bandeira é vermelha com uma estrela. Eu me tornei uma criança que sabia a capital do Marrocos.
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Estamos no oitavo mês de 2020 e eu já assisti séries de pelo menos 5 nacionalidades diferentes. Escutei pessoas falando em alemão mais tempo neste ano que em mais de 20 anos da minha vida. Estou exposto ao modo de vida de outras pessoas completamente diferentes com relações completamente diferentes com o mundo. Relações diferentes muito evidenciadas pela diferença do som das palavras que querem dizer coisas banais como “diversão”. As palavras diferentes parecem apresentas conceitos diferentes de sentimentos. Eu assistia muito desenho japonês como quase toda criança perdida entre os anos 90 e 00, mas todos esses desenhos eram dublados. Hoje a gente pode ver eles com áudio original e legenda. E tentar entender. Admiro o Emicida que aprendeu japonês muito provavelmente naquela época porque era tão viciado em anime quanto eu. Mas pra mim o Japão era um país de todas as maravilhas desconhecidas que eu via criadas naqueles mundos animados. Um dia também na tevê aberta eu vi o clipe da música “Mariana Foi Pro Mar“, um folkzinho bem cansado do Irã! de 2007. Não sou fã da banda, só tava passando na tevê mesmo. Aparentemente na história da música, e consequentemente do clipe, a Mariana sofreu uma grande desilusão porque o marido fugiu com a ex-melhor amiga de nossa protagonista para um lugar distante e inacessível: o Japão. Só ontem, com a música tocando em repeat na minha cabeça, parei para pensar que este foi o primeiro contato com suicídio que tive na vida. A música fala de métodos que minha mente infantil não conhecia. O clipe, fofinho e com a mesma história de superação da música, mostra os métodos. Procurei o clipe no YouTube e achei só quarenta segundos. Fiquei feliz de não acha-lo completo.
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Desde já peço desculpas pelo avanço da hora de chegada desta carta em sua caixa de e-mail. Ela foi finalizada do meu celular às 23:55 ao som do Acústico MTV Engenheiros do Hawai (2004). Se você gostou, peço que considere compartilhar este boletim com um amigo. Caso queira conversar sobre músicas ruins, desenhos dos anos 00 ou desconfortos da psique e da alma, pense com carinho em responder este e-mail. Eu sou o Wing Costa, mas disso você já sabia.
Sejam bravos, fiquem seguros.