Alô assinantes e demais pessoas que leem esta carta. Como vão vocês? Eu espero que bem.
Começo a escrever isso depois do banho. Agora são 18h58. Desde ontem, a saber, segunda-feira, essa correspondência ronda meus pensamentos. Lembrei dela durante o banho, pensando em como os sabonetes da Granado fazem uma espuma grossa e bem gostosa. Essa não é uma carta patrocinada pela empresa, mas se quiserem fazer chegar até os representantes dela eu ia adorar um carregamento de sabonetes. Até parei para escrever, abri a página e me peguei às voltas com outro compromisso momentâneo inadiável, que acabou puxando outro e outro e outro e mais um, e um outro que não leva a canto algum. Esse é um trecho de uma música chamada Je Suis Un, da extinta banda Solana. Gosto muito da banda, já vi uns dois ou três shows deles perdido por aí. Na época eu fazia aulas de francês. Não sei por que eu fazia aulas de francês, sempre me esforcei para ser um pouco do contra, o que me gera algumas acusações de hipster ou qualquer outro termo da moda para designar essas pessoas chatas que tentam ser do contra.

(Na imagem acima o personagem Do Contra, de Maurício de Souza)
Quando eu fazia aulas de francês eu achava que essa era uma língua morta, ou que morreria em breve. Eu aprendi no meio do curso que o francês é a língua oficial de pelo menos 30 países. Depois, interessado pela geografia do continente africano, fui descobrir que muitos desses países estão naquela porção ancestral de terra. Fora os aqui do nosso lado, tipo Haiti e Guiana Francesa (que não é oficialmente um país, mas uma espécie de estado francês, enfim).
Já conversamos anteriormente sobre o carinho que tenho por linguística ou como quer que seja chamado o estudo e conhecimento a respeito de idiomas. Li recentemente que existem cerca de sete mil línguas espalhadas por todo globo. Não sei qual a diferença entre língua e dialeto, ou se essa diferença sequer existe. No mesmo texto, uma reportagem muito bonita sobre as línguas do Povo Yanomani, um trecho anuncia uma catástrofe léxica. Lá diz que em 100 anos metade dessas línguas podem desaparecer. Tem gente que anuncie o apocalipse semântico de 90%. É muita língua para morrer. E com a morte dessas línguas, morrem também muitas visões de mundo. “Visão de mundo” é uma expressão muito interessante. Eu de vez em quando falo “cosmovisão”, acho chique, mas eu não entendo muito bem o que significa. Fico pensando o quanto da nossa percepção do mundo é modificada pelas palavras que descrevem tudo que contém nele. Tem um filósofo que fala sobre isso, ele se chama Ludwig Wittgenstein. Eu nunca estudei qualquer coisa sobre ele, mas ouço falar que os primeiros estudos são meio lelé até ficarem bons.
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Eu gosto muito de um livro completamente doido do Kurt Vonnegut chamado Matadouro 5 (ou a Cruzada das Crianças). É um clássico anti-guerra. Eu fiquei por muito tempo pensando sobre o conceito de algo “anti-guerra”. A rigor, todos deveriam ser anti-guerra, porque não há nada de produtivo na guerra. A Guerra, essa entidade que atravessa a história e o imaginário do ser humano, é algo muito presente nos meus pensamentos. A Guerra vem e vai com frequência nos meios devaneios sobre como o mundo é entendido pelas pessoas. Fico pensando o quanto da realidade é dobrada violentamente após a presença de uma guerra no território. Como as vítimas (e aqui incluo não só as pessoas que morreram ou que sobreviveram, mas aquelas que perderam pessoas queridas ou tiveram o país chacoalhado por um conflito armado) d’A Guerra enxergam o mundo? E como elas passam essa forma de enxergar para quem vem depois? Fico comparando a realidade do Brasil e a formação do pensamento do povo brasileiro (acho estranho que eu, um sujeito do interior do mundo, pense pensamentos tão agigantados, mas prossigamos) com a realidade de, sei lá, vítimas da Segunda Guerra Mundial. Acho que fui muito exposto à produção cultural relacionada a esses conflitos muito romantizados, na acepção mais narrativa da palavra.
No último final de semana, ouvindo o podcast do pessoal do Giro Latino - que conheci na ótima newsletter que eles fazem - fiquei chocado ao saber que entre os anos 60 e 90, mais de duzentas mil pessoas foram assassinadas durante um conflito armado que durou mais de 30 anos na Guatemala. Ao pesquisar algo sobre o assunto, um dos primeiros links fala sobre as Crises na América Central. Ao me dar conta do número absurdo, pensei nos mais de 400 mortos e desaparecidos reconhecidos na ditadura militar brasileira. Eu precisei pausar o podcast e voltar meu pensamento para A Guerra. O conflito armado entre soldados que defendem lados que talvez nem eles mesmos entendam é só mais uma das imagens do horror impressas na nossa mente e talvez essa seja a imagem mais comum. Mas o que diferencia esses conflitos que a gente vê nos filmes e lê nos livros dos conflitos que aconteceram e acontecem em toda América Latina? O que diferencia as pessoas em uniformes que rastejam pela lama e correm entre explosões com rifles na mão para matar outras pessoas desconhecidas que falam outros idiomas das pessoas em uniformes que em nome da lei matam pessoas negras com guarda-chuvas ou secadores de cabelo nas mãos. Ou pessoas dormindo. Mas pessoas que falam a mesma língua e habitam o mesmo solo. Qual a diferença d’A Guerra nas telas e nas páginas para A Guerra que passa na nossa janela desde muito tempo e a gente insiste em virar o rosto para essa realidade tão feia enquanto assiste uma outra realidade também bem feia falando outra língua e nos deixando aliviados que aquelas situações de horror acontecem do outro lado do mundo, no Líbano ou no Iraque ou no Vietnã ou na Guatemala. Isso também acontece aqui.
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Eu gosto muito daquela história da árvore que cai no meio da floresta e não tem ninguém perto para ouvir. Ela é muito curiosa e parece complexa. Se não tem ninguém para ouvir, a árvore que cai faz som? Para mim é uma brincadeira gostosa, mas muito nociva. Ela ingenuamente condiciona a natureza ao nosso entendimento. Se não há ouvido humano para captar aquele som, o som não existe. A realidade é que a árvore cai e ela faz som. E ela derruba outras árvores. Talvez mate alguns animais. Ela também apodrece e não deixa de fazer parte da floresta, mas agora ela faz parte da floresta de uma forma diferente. Na nossa imaginação a árvore de pé, imponente, parece mais importante que uma árvore caída apodrecendo. Mas ambas as figuras são a mesma coisa. Se a árvore cai e ninguém posta no Instagram, ela continua caindo. Se A Guerra mata e ninguém conta a história das pessoas que morreram, as pessoas continuam morrendo. Eu odeio o gerúndio, principalmente do verbo morrer. É preciso entender a morte como parte fundamental da vida. Tudo que é vivo morre. Mas me entristece muito saber que as pessoas matam as outras na América Central, no Líbano, no Iraque, no Vietnã, no Rio de Janeiro, em Vitória e em Cariacica e em todas as partes do mundo onde as árvores que caem fazem o som de uma árvore caindo.
Eu sei que a newsletter chegou a noite na sua caixa de e-mail e ninguém quer ler e-mails a noite, mas se você me deu uma chance, fica aqui mais um recadinho.
Gato com Chapéu de Alumínio
Eu acho que não seria desengano dizer que essa newsletter é também uma espécie de spin-off do podcast que apresento semanalmente com minha amiga artista Leila Kelly.
Saiu hoje e está fresquinho mais um episódio do nosso humilde podcastinho, disponível em todas as plataformas agregadoras, mas vou deixar uma listinha com os links aqui caso você queira apenas clicar. No episódio desta terça-feira lembramos de coisas, nos reconhecemos nos esquecimentos e falamos de memória.
Espero que você tenha gostado. Se gostar, peço a gentileza de compartilhar com amigos que também possam curtir essas bobagens todas. Caso você tenha chegado aqui através de um desses compartilhamentos, que tal assinar e não perder nenhuma das correspondências mais loucas da internet.
Siga com bravura, siga com cuidado.
A presente epístola foi escrita após comer uma banana. Eu sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.