Olá, camarada! Como vai você? Espero que bem.
Essa newsletter é produto de uma linha de raciocínio muito confusa, portanto peço escusas desde já. Há quem diga que preciso parar de me desculpar tanto. É possível que eu faça isso mais para mim mesmo, no sentido de tirar de mim a culpa que sinto por aquilo, que como um pedido efetivo. Não rogo clemência, me desculpo. E assim tiro de mim a culpa que sinto. Sempre acho curioso quando falo de culpa porque minha cabeça auto-completa culpa… católica. Acho que ouvi muito isso em ambientes progressistas inclusive pelo fato de ser uma pessoa que professa a fé católica. Mas vamos falar de conceitos de catolicismo e cristianismo em outras oportunidades, nesta correspondência queria falar sobre um monge budista.
Pelos idos dos anos 60, o Vietnã era dividido em dois. Vietnã do Sul e Vietnã do Norte. Antes toda aquela porção de terra era subjugada por colonizadores franceses, que chamavam a região de Indochina Francesa. Os franceses que submetiam a população do local eram católicos, a população era majoritariamente budista. Vocês sabem onde eu quero chegar com isso, né? Era prática dos verdugos franceses proibir a prática da religião budista pelo povo. Depois da guerra da Indochina, com a separação e a independência dos países daquele lugar, a saber Laos, Camboja e Vietnã, um vietnamita mui católico e conservador e tirano assumiu um alto posto, ele era o presidente do Vietnã do Sul. O Vietnã do Norte era socialista, com ideais revolucionários de Ho Chi Mihn. Pela divisão ideológica que apresento você já conseguiu perceber o randevu desgraçado que se dava por lá nessa época mesmo antes dos Estados Unidos tentarem levar a paz e a democracia com muitas armas e bombas (o Laos, ali do ladinho, é até hoje o país mais bombardeado do mundo. Foram mais de 70 milhões de toneladas de explosivos despejados numa porção de terra já muito empobrecida).
A história do monge budista que eu queria contar se dá antes violência estadunidense na região. Um ano antes pra ser mais preciso. O estadista católico cidadão-de-bem sul-vietnamita se chamava Ngo Dinh Diem e fazia tudo que um cidadão-de-bem faz até hoje. Contrabandeava, explorava e oprimia religiões diferentes das dele. Ele achou que estava pegando leve com os budistas que protestavam pela liberdade de culto, então resolveu atacar pagodes. Os pagodes ou pagodas são estruturas de culto budistas muito bonitas, além de uma expressão cultural riquíssima brasileira representada por grandes nomes como Belo e Salgadinho.

(O Pagode de Um Pilar, em Hanói, capital do Vietnã)
A história do monge budista que eu queria contar se passa em 1963. No meio de Saigon, vários monges começaram um protesto como tantos outros protestos que fizeram anteriormente. Dessa vez um deles saiu calmamente de um carro com uma almofada e um outro sentou em posição de lótus, com as pernas cruzadas. Era Thích Quảng Ðức esse monge. Um terceiro religioso jogou gasolina no corpo de Thích Quảng Ðức, que sentado acendeu a si próprio e se tornou uma das imagens mais icônicas da história da fotografia e também capa do primeiro disco do Rage Against the Machine. A imagem do monge em chamas enquanto parece estar com os pulmões plenos de um grito que - dizem - não saiu está como esse grito na minha cabeça. Aprisionada. A história que eu queria contar para vocês é a do monge que ateou fogo no próprio corpo para combater o fundamentalismo religioso num país em que se oprimia a profissão de uma fé diferente daquela que o cidadão-de-bem acreditava correta. É curioso como essa imagem de autoimolação, de martírio, esteja tão impregnada na minha mente durante a última semana. Você sabe o que aconteceu nesse tempo em que o grito do monge budista ecoou incessantemente na minha cabeça.

Depois que o corpo do monge foi consumido pelas chamas e o fotógrafo da Associated Press Malcolm Browne imortalizou aquela imagem e outros monges cremaram o corpo de Thích Quảng Ðức e seu coração foi removido intacto e levado a um pagode para ser venerado como o coração de um ser iluminado os Estados Unidos atacaram para evitar que as peças do dominó comunista caíssem e pintassem todo o globo de vermelho. Afinal o comunismo é ruim e todo cidadão-de-bem sabe disso. Mas essa é uma outra história que devo contar outro dia.
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Essa fotografia se tornou ainda mais presente para mim quando se aproximava o tempo de escrever essa carta. Voltei a andar de bicicleta aleatoriamente pela cidade e isso tem me feito bem. Resolvi fazer esse passeio ouvindo o Não Pod Chorar, um spin-off do Não Pod Tocar, podcast sobre o qual já comentei algumas vezes. No episódio em que a Fabiana fala sobre memórias, cheiro de chuva e algumas inseguranças relacionadas aos profissionais da educação (inseguranças que sinto enquanto profissional de comunicação também, vale lembrar) ela usou uma charge. Foi curioso ouvir a descrição de uma charge. Como eu estava pedalando, reparei bem depois que ela falava de uma charge. Antes me pareceu a descrição de uma fotografia. Uma fotografia de uma sala de aula onde uma professora está entre o quadro negro e crianças alinhadas, enfileiradas em carteiras escolares, todas quietas, anjos de candura disciplinados. Acho que por estar falando de memórias e comentários como “no passado é que era bom”, pensei num grupo escolar durante a ditadura. A aula na fotografia que passou pela minha mente era de Educação Moral e Cívica. Minha avó já falou muito sobre essas aulas. Ela era professora. Preenchido dessa lembrança intrusa, pensei como a fotografia captura os momentos e como isso pode conduzir as memórias.
Aquelas crianças do grupo escolar quietinhas muito provavelmente também faziam bagunça, jogavam bolinhas de papel uns nos outros, conversavam durante as aulas e tinha romancezinhos infanto-juvenis e briguinhas de criança. Como todas as crianças. Mas a fotografia em preto-e-branco na minha mente era de crianças uniformizadas e dispostas uniformemente de acordo com a rigidez de uma época que eu não conheci. “Hoje não se respeita mais o professor”. Talvez. Muita gente não respeita a profissão de educar. Mas eu não tenho certeza se há 20 ou 40 anos essa profissão era mais ou menos valorizada. O passado é uma roupa que não nos cabe mais, diria Belchior sem interesse em nenhuma teoria. Passeei por isso para dizer que a foto da professora que não existiu e a foto do monge que existiu e outras fotografias capturam os momentos e tem o poder de mudar o curso da história. Depois do instante registrado pela foto no Vietnã do Sul tudo mudou e muitas pessoas morreram nas florestas do sudeste asiático. E muitas pessoas no ocidente foram contra. E muitas obras de ficção foram escritas e encenadas e hoje eu sei alguma coisa sobre a história do Vietnã e sobre monges mártires de Saigon e boxeadores muçulmanos que enfrentaram as arbitrárias decisões de mandarem jovens para morrer nas florestas do sudeste asiático. E tudo isso rodopia teclado afora para essa página em branco porque eu lembrei da foto de um monge que pegou fogo não por querer que a sua religião fosse elevada ao posto de religião oficial de um país que viria a se unir um pouco mais de dez anos depois, mas por não aceitar que alguém sobrepujasse os costumes de um povo pelo simples fato de acreditar que sua forma de acreditar em Deus é a forma correta, mesmo que para isso o mandatário precisasse sacrificar corpos e locais sagrados apenas para os outros, já que o seu sagrado era diferente.
O ditador sul-vietnamita Ngo Dinh-Diem e o irmão dele, Ngo Dinh Nhu, grande amigo, conselheiro e parceiro nos crimes que já descrevi acima, foram capturados durante uma tentativa de fuga e mortos por membros do próprio exército do país que comandavam.
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Gato com Chapéu de Alumínio
Eu acho que não seria desengano dizer que essa newsletter é também uma espécie de spin-off do podcast que apresento semanalmente com minha amiga artista Leila Kelly.
Saiu hoje e está fresquinho mais um episódio do nosso humilde podcastinho, disponível em todas as plataformas agregadoras, mas vou deixar uma listinha com os links aqui caso você queira apenas clicar.
Espero que você tenha gostado. Se gostar, peço a gentileza de compartilhar com amigos que também possam curtir essas bobagens todas.
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A presente epístola foi escrita tomando um chá preto com jasmim direto da República Popular da China. Peço desculpas pelo intricado joguete de palavras histórico-geográfico, fui escrevendo o que estava na minha cabeça e fatos e datas podem aparecer neste correio eletrônico de forma meio obtusa. Também meio obtuso, eu sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.