Olá, navegantes. Eu já usei esse termo antes, vejam só como ele não é só mais uma pista sobre por quais caminhos narrativos eu quero te conduzir.
Eu gosto muito de jogos de gerenciamento. Um dos jogos mais famosos durante o período de pandemia é, vejam só, um dos jogos de gerenciamento mais famosos da história. Animal Crossing é um jogo de gerenciamento? Deixo aqui além da informação a pergunta para os mais entendidos de games. Enfim, O que é um jogo de gerenciamento?
Abro esse parêntese em palavras porque acho mais chique. Abro para explicar o conceito rapidamente e seguirmos nossa caminhada em direção ao assunto principal desta carta, meus amores. Foi a primeira palavra sem gênero definido que encontrei para me referir a vocês que me leem com frequência. Deixo aqui meu agradecimento.
Um jogo de gerenciamento é um jogo que se propõe a, bom… gerenciar recursos para permitir a evolução do jogador, como o famoso Sim City. Você gerencia construções e recursos energéticos para expandir a sua cidade e gerenciar mais recursos e assim você segue até as próximas várias possibilidades de inclusão da palavra gerenciar que você consiga digredir.
Eu parei para ouvir a crítica do jogo Spiritfarer no podcast MotherChip do muito divertido e informativo Overloadr. Nele, eles discutem se o jogo pode ser considerado um jogo de gerenciamento de recursos com uma boa mãozada de anticapitalismo, porque é um jogo de gerenciamento em que o objetivo é a morte. Na verdade não sei se o objetivo é a morte ou o fim de uma jornada com a carismática personagem principal de diversas almas que tem que atravessar um rio no imenso barco gerenciado por você, jogador.
Essa história de atravessar rio rumo a morte me era muito familiar. Eu tenho uma característica engraçada de acompanhar as personagens de qualquer história que me contam, porque eu sempre torço pro terceiro cavaleiro do zodíaco mais forte (o Hyoga) ou o terceiro na cadeia de comando de uma equipe de amigos no mundo Digimon (todo mundo sabe que tem o chefe da equipe, o segundo lugar meio rival amigável e depois aquele terceiro personagem mais carismático do bando, o Donatelo das Tartarugas Ninja, esse terceiro. Ele é sempre o mais legal pra mim.

Divaguei para chegar ao ponto de que quando eu assistia na tevê aberta o desenho do Hércules (que tinha duas temporadas e passou em diversos programas infanto-juvenis do SBT), eu ficava ali juntando as referências do desenho. Pesquisava os deuses do Olimpo que já tinha ouvido falar nas aulas de História. Desse desenho um dos personagens com a história mais legal para mim não era nem o herói, nem o vilão, nem um deus do Olimpo superforte ou amigo de jornada da personagem principal. O mais legal era um que aparecia um episódio ou outro, muitas vezes diminuído à uma caveirota vagabunda servil ao Hades. O barqueiro do rio Aqueronte, que leva as almas ao submundo. Caronte.
Nossa, fiquei emocionado com essa introdução dramática a um personagem que não dá nem para achar imagem no google direito. Mas ele apareceu no desenho. E eu fui pesquisar quem era. Isso lá pelos idos dos anos 2000. Caronte é o barqueiro do inferno. Muitas vezes apresentado nos produtos de cultura popular como uma criatura mal humorada, resmungona e muito avarenta. Caronte era meio que a referência muito concreta aos taxistas do Rio de Janeiro. A classe que não me processe por favor. Respeito muito, até tenho amigos que são. Ou que juntaram dinheiro para comprar uma placa e botar alguém pra defender. “Defender placa de táxi” é muito expressão de subúrbio né?

(Deixo essa propaganda de Santana em indulgência à categoria tão querida)
Eu percebo que uso muito a adversativa “mas” nos meus textos por aqui. Contudo ela me parece a mais ideal para como uma linha costurar a colcha de retalhos que é este fluxo de consciência meio alterada. Mas Caronte, para mim, nunca foi essa figura. Destaquei o “para mim” ali sem qualquer propósito, porque nunca foi para os pintores e escultores pré-rafaelistas. O tenso é que Caronte provavelmente era o filho menos amado. Pensa só. Caronte é filho da Noite com a Escuridão. Esse casal lindo teve vários filhos. Um deles Hipnos, deus do sono, responsável pelo descanso de todos os mortais. O irmão gêmeo de Hipnos é Tánatos. Deus da morte, responsável por ceifar a vida dos mortais. O irmão menos amado dos dois é o Caronte, que fica com o serviço braçal de empurrar alma num barcão sinistro. Deve fazer um frio, aquele ambiente úmido e escuro. Provavelmente fede. Complicado o trabalho. Tipo entregador de iFood em Vila Velha. Foi isso que a Noite e a Escuridão reservaram para o Caronte. Olha o serviço que dão pra ele.
Mas Caronte não era bobo. Se deram o serviço ferrado pra ele, pelo menos ele ia fazer um troco. Assim surgiu a tradição mortuária do óbolo de Caronte. Uma moeda colocada na boca do morto para os rituais de sepultamento. A moeda para Caronte é oferecida pelos vivos para que a alma fizesse a travessia do rio Estige até o mundo dos mortos. Ou os vivos tinham medo da alma escapar do corpo pela boca e voltasse pra puxar o pé.
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O joguinho de gerenciamento de barco para recolher almas me lembrou Caronte. Eu me planejo a semana toda para evitar falar de luto ou morte nesta carta, mas esses me parecem assuntos de conforto. Conforto é importante nessa passagem. É incrível pensar que caminhamos invariavelmente a caminho da morte e esse pensamento tornou-se algo ruim. Acho que é possível supor que a maioria das pessoas hoje pense que morrer é ruim. A morte nem sempre foi tratada como ruim. No fim de Cícero, o final da jornada é comparado a um fruto maduro. O ápice da vida. A razão para a qual se viveu, portanto. A imagem triste do barqueiro cadavérico pelo rio escuro não me parece condizer com aquilo que o sujeito histórico (por não achar definição mais breve para Cícero) versou sobre o modo de vida daquela sociedade. O fim da vida era a chegada ao fim de uma jornada, um momento do recompensador descanso. Da mesma forma que virei aqui falar sobre como o excesso de positividade pode estar nos deixando clinicamente loucos numa leitura desse ensaísta corenano Byung-Chul Han que tá todo mundo falando aí, é com essa mesma cara lavada que eu digo que precisamos nos conciliar com a inevitabilidade da morte e tentar não só suavizar nosso caminho até o fim dessa jornada, mas também tentar nos juntar de maneira consciente ao momento de um grande luto tão avassalador, tão grande demais para os nossos olhos enxergarem, que paira como essa nuvem que trouxe essa frente fria que avançou por esse sul de mundo. O luto de hoje, 25 de agosto, 116 mil mortes. Um luto que se expande e espalha mais ou menos pelo coração de qualquer brasileiro são. Aqui cito o jornalista argentino Luis Bruschtein, do jornal Página 12.
Esta pandemia deve converter a sociedade em um gueto em que todos discutem sobre a morte enquanto morrem.
Essa carta foi escrita ao som do vento sul.
Gato com Chapéu de Alumínio
Eu acho que não seria desengano dizer que essa newsletter é também uma espécie de spin-off do podcast que apresento semanalmente com minha amiga artista Leila Kelly.
Saiu hoje e está fresquinho mais um episódio do nosso humilde podcastinho, disponível em todas as plataformas agregadoras, mas vou deixar uma listinha com os links aqui caso você queira apenas clicar.
Espero que você tenha gostado. Se gostar, peço a gentileza de compartilhar com amigos que também possam curtir essas bobagens todas.
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Adeus
A presente epístola foi escrita ao som do vento sul. Eu sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.