Olá, como vai você? Por aqui as coisas estão caminhando. Aquela acelerada final subindo uma ladeira íngreme sabendo que em breve a pista vai ser só descida e descanso. Talvez elas estejam correndo.
para ler escutando:
.brasil
É curioso ser brasileiro no ano da graça de 2021. O que eu acredito ser minha consciência política foi formada num cenário de estabilidade institucional. As eleições aconteciam com muita naturalidade. Era algo como ir a padaria num dia específico a cada dois anos. Ou visitar um parente antigo. Ou ser visitado por um parente antigo. Comum, mas não trivial. Hoje as coisas estão mais que inflamadas. Estamos vivendo as pústulas dos nossos tempos. É o desagravo final, que precede uma explosão de aspecto desagradável e mal cheirosa. É um presidente que só considera a transição — que eu cresci vivenciando como algo comum, mas não trivial — ou morto, ou preso. Esse tipo de ruptura na confiança do pacto social, que já apresentava pontos de tensão que demonstravam abalar a estrutura deste pacto. Ele está prestes a romper. É estranho. Mas ao mesmo tempo não é estranho, é a vida sob o julgo da colônia, que desde sempre só considera que as opções são essas. Ou preso. Ou morto. É como a gente surgiu aqui entre europeus violentos e população original em choque. É o marco temporal. É a tentativa de ser colonizador de si mesmo. E se atrapalhar nesse caminho.
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.brasil 2
Hoje mais cedo me entregaram na rua um papel de uma cartomante. Achei estranho pegar papel na rua em tempos de pandemia. Mas esse eu peguei. Uma xerox em azul com imagem de São Jorge. Madame alguma coisa Cartomante. Joga cartas, faz amarração de amor, desfaz qualquer trabalho. Banho de ervas. Amarração completa.
Você imaginou o papelzinho né?
Também imaginou os muros pintados com Vovó Zuleide ou Tia Zoraide com uma mistura de religião de matriz africana e algo de cigano. Um amálgama de brasilidade. E me é curioso que isso seja uma memória de um tempo anterior e esteja acontecendo agora, neste ano da graça de 2921. O que me parece repetida é a miséria do povo. É a insegurança, que gera medo, que gera violência pela fome que se aproxima. E também a busca pelo esotérico, pela resposta sobrenatural que aponta para um futuro possível. É o nó no barbante entre a fé e a esperança. É o cara que não vai levar o leite pra casa porque ele decidiu comprar um bilhete da roleta federal pra tentar mudar de vida, na música Aos Trancos e Barrancos, de Raul Seixas e Sérgio Sampaio e Edy Star e Miriam Batucada no disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. A música que descreve o sofrimento cotidiano do cara no bonde pendurado na janela. Do cara no ônibus pendurado na janela. Do Estrangeiro de Camus, de bonde até o mar. Na música o Rio de Janeiro não dá tempo do interlocutor de pensar com tantas cores sob este sol; Talvez o mesmo sol que Mersault, o francês estrangeiro de Camus na Argélia, viu refletido na faca do árabe e o fez ficar cego e louco. E matar um homem.
“E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”
***
“Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente de meu ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala”
Esse é Camus. Mas é também a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. E é também o brasileiro que vai na cartomante quando o dinheiro passa a valer pouco e o trabalho começa a faltar e os preços começam a subir e tudo começa a diminuir. É aí que se aumenta a fé.
.tchau
Esta foi uma carta diferente, mais cotidiana. Pretendo continuar me aprofundando sobre cartomantes e pessoas brasileiras. Tentarei estar, nesta temporada mais atento ao exterior que ao interior, mas sem deixar de apresentar os pontos de inflexão entre os dois, ou mais.
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