Olá, pessoa recebedora desta carta! Como vai você?
Essa é a segunda carta do ano da graça de 2021 e tudo continua exatamente como o esperado, ou seja, uma bagunça. E é exatamente uma história de bagunça que eu gostaria de te apresentar hoje.
.mundos
Eu não lembro muito bem o que eu fazia pelos idos de 2014, mas tenho certeza de que a Netflix não era o fenômeno que é hoje. Era, mas não era muito. Foi nesse ano que eu conheci um outro serviço de stream, hoje já bem popular, a Twitch. Eu não lembro se conheci a plataforma - voltada para transmissões de pessoas jogando jogos - nessa ocasião ou já conhecia e não dava muita atenção, porém foi com esse evento que a Twitch se consagrou, pelo menos pra mim. E a minha história resumida é mais ou menos assim: um sujeito resolveu criar o que chamou de experimento social na Twitch. Com uma modificação no jogo Pokémon Red, o sujeito permitiu que as pessoas que assistiam a transmissão controlassem o personagem na sua saga de capturar monstrinhos e vencer mestres Pokémon. Os espectadores comentavam o comando, que acontecia na tela quase simultaneamente. Pro negócio não virar uma bagunça completa, dois métodos foram acrescentados depois. Democracia e Anarquia. Com a Democracia ativada, a audiência-jogadora votava nos comandos de tempo em tempo. Já a Anarquia permitia todos os comandos digitados no chat.
Se a ideia de assistir alguém jogando já parece estranha para mim, nascido nos anos 90, imagino a ideia de assistir pessoas diferentes dando comandos diferentes completamente aleatórios para um personagem que segue todos (ou quase todos) eles.
Rapidamente, muito rapidamente, criou-se uma comunidade a partir daquilo. Fóruns acompanhavam o andamento do jogo, mesmo que isso se resumisse em um personagem andando em direção a uma parede por um tempo considerável. Em algumas horas específicas do dia um grupo de pessoas “assumia” o controle com o objetivo de fazer o jogo andar. Dessa vez na direção certa. As repetições de comandos formaram uma mitologia. Partes específicas do jogo e determinados personagens e eventos ganharam contornos religiosos após perdas de diversos pokémons e surgimento de outros mais fortes e determinantes na conclusão do jogo. O jogo foi concluído. Em mais ou menos 16 dias de jogatina consecutiva, um total de 55 milhões de visualizações durante todo o jogo e um pico de 121 mil pessoas jogando simultaneamente. O jogo foi concluído.
.afetos
Eu espero que uma história de videogame não tenha entediado você que me lê. Eu não fui da geração que aproveitou o máximo dos jogos de Pokémon nas plataformas originais para as quais eles foram lançados. Ou melhor, fui dessa geração, mas nunca tive o console portátil que servia de base para o jogo, o GameBoy. Mas joguei muito Pokémon em emuladores e num tempo muito além de 16 dias. Não consecutivos, é claro. Mas eu nunca completei, concluí, ou se você preferir, zerei um jogo de Pokémon. Zerar jogos nunca foi meu forte, apesar de ter jogado muitos deles. Minha mãe costumava dizer que eu nunca terminava o que eu começava. Foi assim com aulas de artes marciais na escola, aulas de violão e até a minha primeira tentativa de graduação. A incompletude sempre me acompanhou, com mais frequência do que eu gostaria. Por muitas vezes tive a impressão de que não conseguiria completar uma tarefa, um texto, um projeto. Por muitas vezes deixei coisas pelo caminho, muitas delas foram caindo, escorregando devagarzinho das minhas mãos. Consigo me lembrar do sentimento delas fugindo. Fugir é a palavra certa? É possível que eu também estivesse fugindo.
Eu começo muitas coisas. Falei de projeto ali em cima né? Projetos. Um amigo querido me disse para nunca chamar de projeto, porque corre o risco de permanecer assim. Um projeto. Mas eu tenho medo. Penso muito sobre as muitas coisas que eu acredito ser capaz de fazer. Na minha cabeça essa carta já chegou a muitos lugares diferentes, bem como os podcasts. E as reportagens. E as muitas outras coisas que já pensei em fazer. Mas quando elas saem do projeto. Quando esta carta se torna uma página em branco na minha frente e a saudação muda de carta para carta e eu tento sempre mantê-la sem gênero e eu anoto as coisas que eu gostaria de falar. Quando isso tudo acontece e o projeto começa a tomar forma. E o texto vai ganhando linhas pretas serifadas na página branca da internet e embaixo está escrito Draft Unsaved Changes. Quando tudo isso acontece eu tenho medo de enviar. Se você está aí lendo saiba que eu tive medo de enviar essa carta. E medo de começar a escrever sobre videogame e Pokémon. E medo de não conseguir escrever até o fim. E medo de conseguir. Acho que eu conseguir, vou te falar logo em seguida sobre uma teoria matemática que vai encontrar o começo da história de Pokémon jogado coletivamente por milhares de pessoas. E no meio disso eu te contei coisas muito pessoais que podem ter acontecido com você também. Você tem medo de não completar? Você tem medo de conseguir?
.tchau
Tem sido difícil escrever essa carta. Não por vontade, sempre quero. Tem sido difícil porque a atenção está dispersa. Anoto o assunto que queria que chegasse até a sua caixa de e-mail e começo. E só começo. Me levanto, pego um café e abro outra aba. Olho o celular. Uma, duas, três redes sociais. Caramba, que receita legal. Olha essa reportagem nova do El País, pode ser assunto para uma carta, né? Talvez um episódio do Saturado. Você lembra do Saturado, o podcast que fazia sozinho? Ele tem cinco episódios em todos os tocadores. Gosto dos cinco episódios que estão lá. Meu amigo Rafael Porto fez uma intro muito legal. A nova temporada vem aí! Vem nova temporada do Gato com Chapéu de Alumínio, dessa vez ainda mais legal. O Instagram do Gato com Chapéu de Alumínio está muito divertido. Andreia postou uma nova crônica, Crônica de Busão, também no Instagram, um barato. Vou ler de novo. Deixa eu conferir se já compartilhei nos meus stories. Vou jogar um pouco. Antes deixa eu só terminar essa carta. Com esse assovio lá fora eu não consigo. Vou ouvir uma música. Será que John Legend tem música nova? Não conheço essa aqui. Essa carta foi finalizada ao som de Conversations in the Dark e eu sou o Wing Costa, mas disso você já sabia.
Uau. As epístolas são sempre muito boas, mas essa me tocou particularmente. Também sempre comecei coisas que eu não levo até o fim. O karatê largado antes da faixa preta, o violão encostado antes de saber ler partitura, as DUAS graduações abandonadas quando só faltava o tcc... Mas de alguma forma isso se conecta dentro de mim com o que Natalie Goldberg diz, que escritores passam a vida treinando para serem bobos, olhando a forma como uma gota de chuva respinga numa poça d'água, como a luz entra por um buraquinho no teto etc... Gosto de pensar que estamos por aí treinando nossa sensibilidade apurada, afiando os olhos da mente.
Além do mais, quem disse que as coisas precisam ser levadas até o fim
Poxa, fiquei curioso com a teoria matemática.