Olá, como vai você? Aqui sigo acumulando a poeira dos dias enquanto altero vídeos. Eu espero que esta carta te encontre bem e que você consiga se manter saudável e em segurança.
.afetos
Eu não sou um sujeito de memórias distantes. Tudo antes de 2011 ou 2012 é um grande arquivo perdido em alguma sala vazia da minha cabeça. E essa sala muda de lugar com alguma frequência. E deve ter um fosso cercado por famintos e mordazes gaviais (um dos animais que tenho mais medo no mundo).
Toda essa cena dantesca serviu pra dizer que não lembro muito bem da minha infância e adolescência. Pouquíssima coisa mesmo. Vejo fotos e não sei o que aconteceu naqueles dias. Sei algumas histórias porque alguém me contou e eu lembro de alguém ter me contado.
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Em algum dos sempre bons episódios de “Boa Noite, Internet”, o Cris Dias fala que gosta de ver as memórias revisitadas pelo Facebook. A rede sempre mostra um retratinho do que você estava fazendo há dois ou sete anos atrás. No meu caso é sempre uma citação maluca que eu publicava aleatoriamente no meu perfil. Eu acho que usava o Facebook como quem usa um Twitter sem limites de carácteres.
As memórias do Facebook são como remexer álbuns de fotos antigas. Você vê aquele pedaço imortal de passado e recebe imediatamente uma descarga de nostalgia. Gosto da palavra nostalgia aqui porque essas memórias não precisam ser positivas ou negativas. Sem juízo de valor aqui. Mas elas podem ser bem ruins.
A jornalista de tecnologia Lauren Goode fez uma matéria incrível para Wired falando de como tem sido dolorido ser bombardeada por lembranças de um relacionamento que acabou. E cada memória traz sentimentos que talvez não sejam os melhores sobre aquilo que já passou. Principalmente num momento em que lembrar de um mundo menos caótico e mortal é importante para tentar manter a sanidade.
Eu encarei o infinito que que é não conhecer a pessoa com quem eu dormia ao lado, um tipo diferente de solidão. Lauren Goode, sobre os fantasmas virtuais de um relacionamento.
As redes sociais, com um objetivo claro de lucrar absurdamente sobre seu interesse em revisitar o próprio passado e compartilha-lo novamente e assim retroalimentar o moinho que espreme os nossos hormônios da felicidade até sobrar poucas gotas para momentos nostálgicos à moda antiga, durante uma visita a uma casa antiga com álbuns antigos guardados em caixa de sapato. Estão roubando de nós o direito de esquecer para vender anúncios entregues por algoritmos entre uma memória e outra.
Nossas lembranças funcionam como um filtro. Tudo que aconteceu com a gente entra nos registros, mas com o tempo um divertidamente alternativo vai ali e da uma mexida nos arquivos empoeirados. Da uma varrida, assopra algumas coisas, joga tantas outras fora e até edita lembranças pra gente não sofrer tanto quanto aquilo nos fez sofrer no tempo em que aconteceu.
.mundos
Me parece uma ironia muito fina que algumas pessoas pensem sobre o nosso direito de esquecer e preservar as memórias como elas são — enganosas — enquanto tantas outras pessoas buscam o direito de reconhecimento. Busca olhar para trás, para as raízes mais fundas, para permanecer existindo. Igual os cavaleiros negros da rua Fletcher, na Filadélfia. Pessoas anteriormente escravizadas migraram para outros lugares em busca de trabalho. Fizeram isso com tudo o que tinham, animais. Uma vaca, um cavalo, algumas galinhas. Enquanto as cidades cresciam os espaços para os animais foi diminuindo. Carros e trens substituíram a locomoção com animais ou a necessidade de animais de carga. Mas alguns desses lugares resistiram. Existem estábulos até hoje. Eu fiquei meio obcecado por essa história depois de assistir “Alma de Cowboy”, na Netflix. Concrete Cowboy é o nome original do filme que tem Idris Elba e um rapazinho de Stranger Things. E alguns dos cavaleiros da rua Fletcher, que atuaram para ajudar a contar a história do seu povo.
Para as coisas que são utilizadas como amuleto de proteção ou são usadas como objeto de defesa sobrenatural existe um adjetivo. Esses objetos são chamados apotropaicos. A esses objetos é atribuída a característica de afastar o mau. O MAU. Você conhece objetos assim? Eles vão desde anões de jardim à ferradura na parede.
Eu sei que eu morei em pelo menos quatro casas diferentes durante minha infância. Eu não me lembro de nada relacionado a mudanças. Não me lembro de fazer malas. Não me lembro de desfazer malas. Lembro pouco. E uma dessas poucas memórias é de uma casa com uma grande varanda e grades metálicas azuis.
Entre a varanda e a casa existia um portão, esse era de grade metálica marrom. Ou enferrujado. Acima dele tínhamos uma ferradura pendurada. Nunca entendi por quê. Hoje talvez eu saiba. Mas a memória é essa colagem de coisas que existiram. Nem sempre é verdade. Mas serve para amenizar o trauma. Acho que é por isso que eu não me lembro de muita coisa. Em algum momento em pendurei uma ferradura na porta da minha memória. Apotropaico.
.tchau
Algumas dessas cartas ficam em rascunho por um tempo, outras vêm num susto e quando eu vejo já estou me despedindo de vocês de novo. Obrigado mais uma vez por chegar até aqui. Se você gostou dessa carta, que tal indicá-la para um amigo? Assim eu consigo conversar com mais gente e a gente aumenta essa conversa.
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Eu gosto muito de receber as respostas de vocês. Faz bem saber que tem gente aí do outro lado. Responde para mim, como um e-mail normal, se você tem algum amuleto ou ritual apotropaico para não dar ruim.
Eu mesmo tenho alguns amuletos e rituais só meus. Eu sou o Wing Costa, e você sempre soube.