Olá, como você está? Espero que esta carta te encontre bem. Não tenho contado muito bem a periodicidade das nossas aventuras epistolares, mas isso é quase um ponto pacificado em meu coração. A internet é muito mais legal (pelo menos pra mim) quando ela é feita de maneira espontânea. E isso envolve não ter um calendário bem definido. É aquele sentimento gostoso de VEM AÍ. E veja só, veio.
.Afetos
Eu tenho notado o aparecimento mais frequente da palavra cringe pelos bairros da internet que frequento. Apareceu algumas vezes num grupo de WhatsApp em que eu nunca imaginei que esse tipo de gíria anglófona específica pudesse aparecer. Me gerou alguma curiosidade o fato dessa expressão ter se tornado algo próximo de popular em nesses ambientes. Para além do inusitado, achei curiosa também o significado que davam a essa expressão.
A busca pelo termo cringe no Google apresenta primariamente uma tradução do próprio Google. A tradução direta é “vergonhoso”. O primeiro link, de um jornal digital, pretende explicar o que significa a gíria que, segundo a publicação de maio de 2021, é o meme do momento. Deve ser mesmo. E até onde eu sei o significado é o apontado pelo tradutor. Mas talvez a gente possa navegar um pouco mais fundo nessas águas estranhas da linguagem que se desenvolve a partir de termos em inglês. É quase como se a linguagem determinasse o caminho do sentimento. E o que você sente para comentar “nossa, cringe. Não consigo olhar mais”, como frequentemente vem embalado o termo?
Cringe é como aquela cena vergonhosa que você assiste, mas parece estar vivenciando. Vergonha alheia seria uma forma brasileira para descrever cringe? Cringe é o Michael Scott, de The Office. Bem como quase toda a família Bluth, de Arrested Development. Ou pelo Buster mais especificamente. É como sentir a empatia do ridículo. E é também esse sentimento que faz com que a gente transforme a Gretchen em meme. E também porque A Fazenda tem alguma audiência na Record. Ou qualquer programa desses de celebridade ou baixaria ou mundo cão. Talvez tudo isso a que somos expostos desde muito muito tempo tenha encontrado sua palavra no mundo. Cringe. Não obstante eu prefira vergonha alheia.
É bom ver essas coisas, ou é abertamente secreto o gosto por esse tipo de conteúdo, porque essa sensação é um fator de reconhecimento da fragilidade humana. Sentir vergonha alheia (ou aquele desprezo momentâneo por aquela pessoa que passa por uma situação embaraçosa) faz a gente perceber que não somos aquelas pessoas estranhas de quem desdenhamos, ou por quem demonstramos estranheza. É como sentir um alívio por não estar passando por aquela mesma situação. E se quem passa a vergonha for nosso desafeto, isso ganha até nome chique em alemão. Schadenfreude.
Entretanto vamos nos ater à vergonha alheia ou ao cringe. O estranhamento pode parecer agridoce porque apesar de reconhecermos que aquilo que acontece é vergonhoso, a pessoa que comete o ato de ser cringe não percebe o quão estranho ela está agindo naquele momento. É ter uma confiança tão inabalável que não consegue perceber as atrocidades cometidas, sejam estéticas, materiais ou intelectuais.
O Michael Scott é cringe porque nós nunca agiríamos daquela forma em um ambiente de trabalho. Saber que ele está passando aquilo e eu não me permite um sentimento de superioridade que acende uma luzinha na minha cabeça, ou me dá um biscoitinho, ou me oferece um estímulo positivo no cérebro mesmo que eu saiba que aquela situação é desagradável e eu não deseje que ninguém passe por ela.
.mundos
Existe esse professor de robótica japonês chamado Masahiro Mori, que estuda a percepção humana sobre robôs. O que a gente sente ao nos confrontar com uma realidade robótica muito próxima do ser humano? O professor também mistura religião nisso tudo e tenta entender as implicações metafísicas do desenvolvimento de entidades robóticas.
Foi pensando em como a presença dos robôs nos afeta que o Mori identificou que quanto mais parecidos com humanos os constructos forem, mais as pequenas estranhezas como uma expressão facial estranha ou um movimento pouco natural nos afetam. Nos afetam causando um sentimento esquisito, um sentimento bem difícil de descrever. Esse sentimento é atribuído ao Vale da Estranheza. Ou Uncanny Valley.
O vale é a linha tênue entre o reconhecimento e a aquela coisa que você não sabe bem o que é mas de causa um desconforto mesmo assim. E não precisa ser só com robôs. qualquer coisa que tente de aproximar o máximo possível da forma humana, mas que apresenta esse sentimento. Desconforto é uma palavra boa para tudo que habita o vale. Outra palavra que eu sempre associei a isso é cringe. Dizem que é o meme do momento.
.polaroid
Eu fui surpreendido durante a semana por um animal incrível. Ou incrivelmente assustador. Um pássaro que parece muito grande e tem um bico muito ameaçador e faz um barulho muito bizarro. Talvez você também tenha visto.
A cegonha bico-de-sapato. O arauto do apocalipse em formato de ave. O famoso biólogo e divulgador científico Pirula fez um fio no Twitter falando sobre o animal. Eu não posso olhar muito pra esses bichos exóticos e extraordinários se não me apego. Prefiro correr de medo antes.
.tchau
Ainda temos muito assunto sobre esse sentimento de medo e fascínio (meio cringe?), mas por ora recomendo o vídeo do canal ContraPoints, de Natalie Wynn, no YouTube. Ele foi a base do meu pensamento depois de entender que eu precisava falar de cringe. Às vezes me passa pela cabeça que essas cartas podem ser um pouco cringe também. Mas quem não é? Fator de reconhecimento da fragilidade humana, lembra? Você deve lembrar também que eu sou o Wing Costa.
Você pode me dizer o que achou dessa carta. Eu vou gostar muito de ouvir. É só deixar um comentário, que tal?
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AMIGO EU FIZ MUITO COMENTÁRIOS SERÁ SE FOI ALGUM? SE FOI PEÇO PERDÃO
passou da hora do ~buro~ do mozine desenhar um "vosê é gringe"