Olá, navegante (achei bom esse negócio de navegante porque não tem gênero também).
Para manter um padrão pessoal de absurdos neste boletim (carece de palavra melhor), evito comentários acerca da escatologia política brasileira. Contudo eu preciso passar tangencialmente pelo fato do presidente ter sido bicado por uma ema no mesmo dia em que o ministro que segura os liberais no seu governo foi mordido por um cachorro. Contexto feito, me impressionou o fato do Palácio do Planalto ser também um santuário das pescoçudas. Ao ver a notícia do ataque aviário digno de um hitchcok com sérias restrições orçamentárias, recebi quase que de imediato imagem de um outro presidente alimentando os mesmos animais, contudo em situação mais harmoniosa. Me despertou a curiosidade sobre a origem das emas do palácio presidencial. Seriam emas cães de guarda mais eficientes? Se esse fosse um motivo plausível, por que não gansos, mais agressivos e barulhentos? Se se faz necessária a utilização de animais para estes fins, o que fazem os dragões da independência, espécie de guarda real brasileira da qual quis fazer parte quando criança após ver que eles carregavam espadas (e para uma criança que assistia qualquer coisa da televisão dos anos 90 espadas eram o máximo) e chapéus muito diferentes.
Eu em minha incansável jornada em busca de conhecimentos inúteis cheguei a uma resposta no portal de Acesso à Informação datada de 2016 (será que responderiam hoje?). Na resposta também diz que lá tem um monte de peixes, várias espécies mesmo, mas vou deixar aqui a informação importante.
“O Palácio da Alvorada e a Granja do Torto são registrados no IBAMA como mantenedores de fauna e área de soltura. Há funcionários que cuidam da alimentação e limpeza dos ambientes e uma bióloga responsável pela supervisão dos trabalhos. Veterinários do zoológico de Brasília acompanham a saúde dos animais silvestres”.
Muito irônico o fato desses espaços hoje nefastamente habitados por pessoas que pouco se importam com a manutenção de qualquer coisa serem mantenedores oficiais de qualquer tipo de vida.
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Conversando com um amigo sobre esta correspondência, ele me chamou atenção para o fato da palavra epístola, como no título destas modestas palavras. O que para mim era só uma piada ruim sobre um episódio de Chaves, o amigo leu com a referência religiosa das leituras bíblicas da missa, as epístolas de Paulo aos romanos, efésios, filipenses, coríntios (não farei piadinhas futebolísticas, mas eu sei que você estava esperando por isso. Como Paulo era prolífico em sua comunicação por cartas, e nem tinha Correios naquela época hein.
Mas onde quero chegar com isso? Tenho me feito perguntas como essa para conseguir alinhar meus pensamentos enquanto escrevo a você, querido leitor. Será que Paulo também as fazia? Enfim, quero chegar no meu dilema toda vez que me sento para finalizar esta newsletter. Carecemos de uma tradução melhor para este termo. Minha intenção aqui é só me corresponder com quem estiver interessado em um amigo epistolar, boletim não supre essa minha necessidade.
Acho traduções fundamentais para o exercício da literatura. Para mim quem tem a capacidade de traduzir é tão autor da obra quanto o autor que tirou aquilo da cabeça num primeiro momento. Menção honrosa aqui para meus preferidos Juliana Cunha e Caetano Galindo. Queria ser amigo deles.
Para um breve passeio pela importância da tradução, queria que você fizesse uma visita comigo a algo que tenho revisitado com frequência nesta última semana. A História Sem Fim, aquele filme do dragão meio cachorrão voador que passava na Sessão da Tarde. Você deve se lembrar com menos carinho que eu dessa obra, mas a exaustão da exibição deste filme me levou a uma memória razoável sobre ela. Um dos meus personagens preferidos é Gmork, o lobão assustador que se auto intitula O Prenúncio do Nada. Para uma rápida contextualização, no filme um garoto que era atazanado na escola acessa, por meio de um livro, um mundo chamado Fantasia. Mas Fantasia está ameaçado pelo Nada, que é o grande vilão etéreo desta história. O nada está se expandindo (como o universo está se expandindo na cada dia mais acertada afirmação aristotélica da composição do universo).

Na versão brasileira alamo do filme, Gmork fala entre grunhidos que Fantasia está morrendo porque as pessoas começaram a perder suas esperanças e esquecer seus sonhos. Por isso o Nada está ficando tão forte. Gmork tenta ajudar o Nada. Na versão dublada, ele diz para Atreyu que as pessoas que têm esperança são fáceis de controlar. Isso ficou reverberando na minha cabeça de criança. Revi recentemente a versão em inglês, mas nela Gmork fala que ajuda o Nada para que as pessoas percam suas esperanças e sonhos.
Pessoas sem esperança são fáceis de controlar, e quem tem o controle tem o poder.
Essa é a frase de Gmork. A tradução faz toda a diferença, né?
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Em assuntos não relacionados, comecei a ver O Expresso do Amanhã, seriado da Netflix. Já tinha visto o filme, dirigido pelo Bong Joon Ho. Demorei a apostar no seriado com medo de que estragasse a ótima experiência que tive no filme. Me enganei, o seriado é muito divertido e bem feito, o que me fez pesquisar se era adaptada de alguma obra literária, então eu tergiversaria para como adaptações podem ser muito bem feitas sem aquela chatura de reclamar que “o livro é sempre melhor” e como isso é uma interpretação boba e só evidência a importância literária de um roteiro de qualidade, mas aí eu tomei um belíssimo tapa na cara ao descobrir que é sim uma adaptação, mas de uma graphic novel, o que por si só já provaria o ponto da importância desse tipo de criação para a literatura.
Conversaremos sobre isso em uma carta futura, eu espero. Pretendo falar sobre meu querido amigo Arabson. Mas acho que já enchi sua caixa de e-mail e paciência com meu labiríntico pensamento.
Fiquem a vontade para responderem a este e-mail. Recebo respostas com grande carinho e todas elas alegram meu coração. Se você gosta dos assuntos tratados aqui ou pelo menos da forma como eles são tratados, cogite compartilhar essa correspondência com um amigo. Se você chegou aqui através de um amigo ou link, que tal se inscrever para receber sempre este conteúdo completamente sem compromisso com feitura de qualquer sentido?
Sigam com bravura, sigam com cuidado.
A presente epístola começou a ser escrita ao som de uma banda portuguesa, mas me senti muito colonizado e passei a ouvir o novo disco da Fernanda Takai. Incrível como ela consegue falar das desgraças com aquela voz maravilhosa. Terminei esse boletim ouvindo o disco OK OK OK de Gil, influência dos amigos Matheus Bonela e Rafael Porto. Eu sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.