Alô, como vai você?
Por aqui as coisas seguem seu misterioso e indelével caminho. Não sei para onde. Quase sempre as coisas acontecem e mexem com todo universo, um milímetro de cada vez, e eu não entendo. Então eu aceito. E sigo. Sigamos juntos. Mesmo com todos esses últimos tropeços em direção a um futuro bom, é importante que a gente continue seguindo.
.afetos
Há um tempo me interesso por podcasts e isso não é um segredo para ninguém. Acho incrível poder ouvir histórias, ouvir as histórias das pessoas e dar corpo a uma voz. Dar rosto àqueles timbres. Tentar entender como se mexem as bocas das pessoas que falam do outro lado. Criar para mim os cenários dos enredos e fazer do meu jeito o jeito dos personagens. Mesmo que esses personagens sejam históricos e o podcast seja sobre algum evento que marcou a América Latina. Inclusive um dos meus preferidos é a Radio Ambulente, em espanhol. Cada semana eles contam uma história nova que se passa em algum lugar desse nosso continente diverso e eu bebo um pouco dos sotaques e das palavras únicas do castelhano salvadorenho, as expressões mexicanas e a forma de falar pausada e quase brasileira de um personagem venezuelano. Quantas viagens bonitas. Algumas delas dolorosas. Algumas delas em realidades completamente diferentes daquela minha que ouvia de longe o rádio do meu avô, abafado pela cabeça que dormia sobre o aparelho depois do almoço. Eu pisava devagar pelo corredor enorme para não perturbar aquele sono embalado por alguma estação AM cheia de reverb. Até hoje eu piso devagar. Até hoje o que é dito me encanta.
Assim parei no Benzina podcast que apresenta as histórias dos Orixás, entre outras coisas mais. Aprendi um pouco sobre Oyá e Omulu e como a primeira, mulher bonita e poderosa, senhora dos ventos e das tempestades e dos trovões e das águas e das transformações, tirou o senhor da peste, envergonhado e coberto de palhas para que ninguém reparasse durante a alegria da festa, para dançar. E a dança foi linda. E Omulu mostrou sua força para todos os outros Orixás que estavam presentes.
Eu conheço nada do panteão das religiões de matriz africana. Para falar a verdade eu não sei nem se é assim que se diz mais. Mas como é bonito o saber do povo. E como é forte o saber que sobreviveu os horrores da escravização. Como é incrível que sem que uma linha fosse escrita, toda a história de um povo se deslocou forçadamente para uma terra desconhecida. Sua história era conhecida. Cada pessoa que sobreviveu após ser arrancada violentamente da sua terra, do seu povo, da sua família, guardou o saber ancestral na memória. E toda essa memória é invencível. Toda essa memória é arma para a guerra ao som dos tambores africanos que vieram para essa terra desconhecida que passou a ser deles também.
Um outro podcast que já comentei por aqui é Noites Gregas, programa que conta as aventuras dos deuses do panteão grego. O professor que apresenta o podcast explica a metodologia que ele vai usar para nos contar sobre as situações mui humanas dos seres divinos cultuados na Grécia. Boa parte do que a gente sabe sobre eles é culpa de Homero. O poeta escreveu quase tudo sobre cada um dos deuses. É a partir da formatação dele (e de alguns outros, mas primordialmente dele) que foi possível discriminar o temperamento e os hábitos de cada um dos membros do Olimpo.
Eu sempre me interessei por isso, desde as aulas de história do ensino fundamental. Incrível como aquela sociedade era complexa e criou deuses à sua imagem e semelhança para explicar o natural inexplicável. As tempestades e os trovões e as águas e as transformações. O arco-íris é a capa de Hermes, mensageiro dos deuses e ponte das almas para o mundo dos mortos.
O mensageiro dos Orixás é Exu. Ele tem uma personalidade forte como todos os outros membros do panteão dos Orixás. Todos os membros do panteão grego também tinham uma personalidade forte. Arquétipos.
Quanto mais eu ouço os Itan, mais inevitável fica a comparação entre as histórias do povo que foi arrancado da sua terra e as histórias do povo considerado berço da civilização ocidental. Com uma diferença grande e crucial para mim até aqui. Homero (e outros poetas) deixou escrito e descrito na Íliada e na Odisséia, grandes obras da literatura mundial, a forma como o grego enxergava o mundo. Somam-se às narrativas o que foi encontrado nas cerâmicas gregas e nas obras de arte inspiradas em todas essas histórias incríveis.
Já os Itan e os grandes feitos dos poderosos Orixás vieram acorrentados e violentados nos porões de navios. Vieram na memória e na língua daqueles que foram desviados do caminho da sua terra, mas não foram deslocados do rumo da sua própria história.
A mitologia dos Orixás faz parte de um livro lindo escrito no sangue dos povos. Escrito no sangue, não com o sangue, que mesmo derramado brutalmente não deixou de contar as histórias dos deuses guerreiros e fortes. Eu quero aprender mais. Eu queria ter aprendido na escola sobre esses reis de povos que habitaram as margens do rio Níger.
.polaroid
A artista afrocubana-americana Harmonia Rosales recriou várias obras clássicas colocando como personagens principais pessoas negras.
Cuba também foi destino de muitas pessoas negras escravizadas. Em Cuba, o panteão dos Orixás também existe. As histórias talvez tenham outro nome, como tem também no Haiti, primeira república negra do mundo.
.tchau
Essa carta foi escrita ao som de algum desses lo-fi hip hop que aparecem aleatoriamente no YouTube e finalizada ao som da música mais triste do Interpol. Talvez você saiba qual é, mas você o que você sabe com certeza é que eu sou o Wing Costa.