Essa é a primeira carta que eu envio cujo título foi escrito antes que eu escrevesse qualquer outra palavra. Talvez seja a primeira vez que um ciclo de pensamento se encerre tão rapidamente que me deixaram meio tonto. Chapado de realidade.
Olá, espero que você esteja bem. Por aqui estou nervoso com a velocidade da vida. É incrível esse pedacinho negativo de infinito. Nós não somos nada, até que em algum momento dessa linha prateada de tempo passe os a existir. E aí nós somos muitas coisas no caminho até pararmos de ser. E a partir daí voltamos a não existir. Nos tornamos novamente o infinito. E durante todo o nosso tempo minúsculo em relação ao infinito nós vivemos e somos coisas. Alguns de nós são pedreiros. Alguns de nós somos jornalistas, trabalhadores da palavra. Alguns de nós passam fome. E algumas pessoas são dentistas.
.afetos
Fui ao dentista. Um amigo de um amigo que se tornou um amigo. Ele abriu espaço na agenda no dia em que se vacinaria contra Covid. Ele fez procedimentos muito minuciosos enquanto eu permaneci de boca aberta. E mudava brocas e seringas e pequenas esmerilhadeiras e alicates e ferramentas. Antes disso falávamos como é o serviço de pedreiro. Tenho brincado sobre fazer curso de pedreiro. Todo mundo fala que “pra pedreiro não tem curso”. Passa-se de pai para filho. Meu pai era pedreiro. Das poucas lembranças que tenho dele algumas são em andaimes e em meio a tijolos. Depois ele ameaçou minha mãe com um facão e foi embora. Ele virou traficante na rua em que morou a vida inteira com a mãe dele. Uma avó da qual pouco me lembro além da cegueira e de passar a mão na minha cara para me reconhecer. E um toca-discos em cima de uma caixa de música como o que eu tenho aqui em casa. Existiu fome.
Voltamos no texto agora para o consultório de dentista quando conversávamos sobre a hereditariedade da construção civil artesanal. Brinquei sobre ser filho de pedreiro, portanto poder herdar a profissão. Comentei que ser dentista deveria ser tão artesanal quando ser pedreiro. Mas para dentista tem curso superior. Meu amigo dentista artesanal abria buracos nos meus dentes com pequenas ferramentas e restaurou com pequenas resinas que endurecem numa luz azul. Ele me falou que estava fazendo tratamento dentário porque perdeu um dente. O dente 15. Perguntei como ele sabia qual era o dente. Ele apontou para o raio-x da minha mandíbula torta e separou em quadrantes tortos. “É uma linguagem universal de dentista”, me explicando como as classificações de dente são feitas.
.mundos
Em casa comecei a ver o segundo episódio de um seriado chamado Amigas para Sempre, na Netflix. A série conta paralelamente a história de duas amigas da infância à maturidade. Na “jovem vida adulta” é o tempo em se passa boa parte da história. Vemos duas jornalistas vivendo e trabalhando em 1980 e poucos. São trabalhadoras de uma redação de televisão. Em seguida uma se torna muito famosa e secretamente triste clichê enquanto a outra se tornou a mãe da família média americana divorciada e não tão secretamente triste. Pelo menos para nós espectadores. E imaginei que esse seriado conversa com muitas pessoas da minha idade porque podemos anacronicamente adaptar aquela realidade à vida de nossos pais na idade que nós temos hoje. Refleti sobre aquela realidade estar muito próxima também da minha realidade. Do seriado da minha vida que já soma umas seis temporadas. Algumas boas, outras nem tanto. Mas muita gente deve se sentir exatamente como eu. Isso pode ser o Espírito do Tempo ou a Indústria Cultura. Talvez seja os dois. Duas linguagens universais.
De qualquer forma, eu senti muito o que cada uma daquelas mulheres sentia. E é engraçado porque eu sou um homem branco de 30 anos, que é basicamente o perfil hegemônico para quem se direciona a maior parte das produções. Mas essa não é. Sinto que Amigas para Sempre é um Sex and The City com dilemas modernizados e um ponto de vista mais adequado (não moralmente, veja bem) ao perfil das mulheres que consumiriam essa série. Achei bonito isso existir dessa forma tão cheia de simbolismo e qualidade. Mas eu também posso só estar falando um monte de besteira não adequada, dessa vez moralmente.
Ouvi um barulho de carrinho de mercado na rua. Aquele metal seco no asfalto irregular meio cheio de pequenas pedrinhas que fazem aquela engenhoca trepidar. O barulho demora um tempo considerável atravessando a rua com a paciência de um plano iraniano. O barulho para. Eu vejo da janela uma pessoa revirando o lixo. O lixo está quase sempre revirado na minha rua. E tem cada vez mais pessoas na rua. Cada vez mais pessoas que existem e muitas e muitas pessoas fingem que não existem. Elas são infinitos. Talvez a linguagem mais universal seja a fome.
.polaroid
.tchau
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