Retrato da juventude na internet
A trajetória de um meme em redes e fóruns aponta para um futuro Lofi triste.
Olá, como vai você?
Eu espero que esteja tudo bem por aí do outro lado da tela. É muito bom saber que você abriu essa carta. Hoje a gente vai conversar sobre internet e comportamento e como uma coisa afeta a outra. Eu como eu percebo que uma coisa afeta a outra. Se você quiser continuar essa conversa, tiver outro ponto de vista ou ideias complementares, lembre-se sempre que pode responder (e eu vou gostar muito de receber a sua resposta) esta carta como um e-mail normal.
.mundos
Frequentemente me deparo com playlists com nomes enormes que são mais ou menos assim: Lofi hip hop - Music to relax/study to ☕. Você já deve ter esbarrado em alguma dessas. Hoje ainda não é o dia que vou falar sobre elas, mas já adianto que vamos conversar sobre esse “estilo” por aqui em algum momento.
Essas playlists, além de músicas que me fazem conseguir ter alguma concentração por um período de tempo maior que o de uma sinapse tem muitas variações. Algumas excelentes, como Lofi Brasil Radio Mix e outras modificações e remixes. Um estilo específico tem me chamado atenção há um tempo e elas têm algumas coisas em comum, a começar pelo título: Doomer music. Todas elas também são acompanhadas de um desenho um pouco mais elaborado daqueles já tradicionais (e meio breguinhas) memes. Vou colar uma imagem do doomer aqui, mas vou tentar descrever também para exercitar minha capacidade descritiva.
O doomer parece jovem, usa roupas meio largadas, geralmente um casaco de moletom e uma touquinha. No rosto uma expressão de desolação. A barba por fazer, olheiras pronunciadas, às vezes os olhos vermelhos — vamos considerar de noites mal dormidas — e um cigarro que completa o visual triste.
Essa evolução dos “poker face” e “troll”, que invadiram a internet lá pelos anos 10, tentou — e conseguiu — traduzir um sentimento. Ela também tinha um nome, Wojak. O Wojak começou a aparecer abraçando um outro sujeito acompanhado da frase “I know that feel, bro”. Você também deve ter esbarrado com esse meme por aí. Pela primeira vez um meme tentava exprimir empatia. O Wojak não aparecia parar rir de você. Nem rir com você. Nem rir em absoluto. Ele aparecia para confortar. Para com uma imagem só explicar aquele sentimento estranho que a gente carrega no peito de vez em quando de não estar triste nem feliz. Apesar de estar sim um pouquinho triste.
Entre muitas modificações da imagem do Wojak, algumas delas começaram a ser referenciadas às gerações Baby Boomer, Gen Y, Gen Z. Com algumas diferenças, o meme foi utilizado para retratar jovens felizes e cheios de expectativas, pessoas mais velhas que tentam se enquadrar em ambientes e contextos jovens (ok, boomer) e os jovens adultos sem expectativas, ainda meio perdidos, sem entender o que está acontecendo, qual seu papel no mundo e para onde eles se encaminham.
Eu sei que essa pode ser uma sensação comum. Acredito que a minha geração (que provavelmente deve ser a sua que me lê aqui) é meio perdida mesmo. É curioso que sejamos uma geração de jovens adultos meio perdidos que vivem um fluxo para o qual parece termos sido empurrados, com empregos que fazem parte do que a gente sempre sonhou mas também não soam tão satisfatórios como quando a gente sonhava e algum certo acúmulo de frustrações, quando a internet parece cada vez mais parte fundamental da nossa personalidade com conteúdos intermináveis sobre como viver melhor, como aproveitar a vida ao máximo, como ganhar o primeiro milhão antes dos 20 anos de idade, como agradar, como ser agradado, como viver com pouco, como conquistar muito. Esse tipo de contraste pode ser inclusive motor da quantidade assustadora de diagnósticos de ansiedade e depressão, descobertas cada vez mais cedo e atingindo cada vez mais gente.
Se ansiedade e depressão são marcas indeléveis da sociedade em que a gente vive hoje, principalmente características quase inerentes a uma geração inteira, nada mais apropriado para a internet que atribuir uma imagem a isso. E essa imagem me parece ser o doomer. Lembra da descrição dele? Talvez o doomer seja imageticamente um espírito do tempo. O humor de uma geração cansada demais de perseguir sonhos que ainda não entendeu muito bem por que tem. Uma geração que questiona os propósitos de se enquadrar em uma rotina que só gera mais ansiedade, depressão e cansaço.
Vídeos no YouTube, religião, pais, livros, revistas, jogos e um monte de outros produtos culturais se esforçam para apontar um caminho, um padrão. Mas esses padrões são diferentes e conflituosos, o que pode fazer com que o jovem adulto em busca de um lugar no mundo não consiga sentir muita firmeza em qualquer desses caminhos. E a partir disso, as dificuldades muitas vezes normais da vida acabam parecendo maiores, mais assustadoras, geradoras de ainda mais ansiedade, depressão e insegurança. Somos a geração da segurança na insegurança.
A segurança na insegurança.
Depois de levar diversas crises de síndrome do impostor misturadas com rompantes de adrenalina por ter feito algo de que me orgulho, a psicóloga que me acompanha (valeu, Carol!) falou essa frase. Ela roda minha cabeça com alguma frequência. Comecei a ler alguma coisa sobre a teoria do apego, por recomendação da Carol. Fui atrás de John Bowlby, sujeito que dedicou os estudos à criação da teoria. Não li o suficiente ou conheço o bastante para tratar dela aqui com propriedade, mas me chamou atenção a transmissão intergeracional de insegurança.
Essa insegurança, de acordo com os estudiosos da teoria, é gerada por uma ruptura, mais comumente atribuída à ruptura da relação mãe-criança. Um rompimento nas ligações de apego. Esse rompimento gerador de insegurança foi identificado em três fases diferentes: protesto, desespero e desapego.
Cada uma das fases é acompanhada por sentimentos diferentes. Não acho difícil traçar um paralelo e atribuir essas fases ao contexto geracional. Quanta gente a gente não encontra por aí que demonstram raiva, medo e sofrimento? Protesto. Além disso, há quem demonstre insegurança como desesperança, tristeza que se apresenta como apatia. Desespero. E por fim essa apatia pode se transformar novamente em medo e carência, mais uma vez insegurança. Dessa vez desapego.
É muito mais fácil esperar que nada vai dar certo. Já que é pra sofrer, vamos adiantar o sofrimento. Rir dele. Vamos fazer piadas autodepreciativas e desacreditar de qualquer potencial que nós possamos desenvolver para evitar qualquer outra frustração que pode ser gerada por não ter alcançado esse potencial. Ou por não alcançar a ideia de potencial que se apresentou no início. Se eu nem jogar eu não corro o risco de perder.
A segurança na insegurança.
.polaroid
Nessa parte da newsletter eu deixo alguns links de vídeos que vi, textos que li e músicas que ouvi durante a semana (ou durante o tempo que levou até eu te enviar essa carta).
É uma seção que poderia ser facilmente preenchida por fotos e vídeos de toda sorte. Tenho seguido perfis de Twitter e Instagram dedicados a macacos, jacarés, morcegos, gambás e também cachorrinhos e gatinhos. Todos muito fofinhos. Recomendo para tentar distrair um pouco de noticiários cada vez mais desesperançados. Mas vamos lá.
Comecei o anime Samurai Champloo. Além de divertido, tem uma das melhores trilhas sonoras depois de Cowboy Bebop. Conheci a trilha sonora antes mesmo de conhecer o anime.
Para seguir alguma linha de raciocínio nesta carta, vou deixar aqui uma entrevista com Tom Gauld, que lançou recentemente a graphic novel Guarda Lunar. A primeira obra dele, Golias, foi lançada por aqui pela ótima editora Todavia.
Botei no meu carrinho o livro Os Viajantes, de Regina Porter, no meu carrinho. Sem ler nada sobre o livro ou a autora. Botei o livro na lista só porque é traduzido por Juliana Cunha. Professora da FGV-SP, resenhista de ficção do jornal O Globo e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Conheço como escritora da internet e fotografa incrível com um ensaio sobre a Coréia Popular.
.tchau
A você que assina essa newsletter, que me permite postar pessoalmente esta carta na sua caixinha de e-mail. É bom estar aqui. Você pode responder esta carta, se quiser. A ideia é que seja uma correspondência. Vamos nos corresponder?
Me mande links, reportagens, teorias e outros textos que você encontra na internet?
Encaminha esta carta a quem ela te faz lembrar. Encaminha para quem pode gostar. Poste em suas redes sociais e me marque para continuarmos a conversar por lá. Eu sou o @wingcosta, talvez você já saiba disso.
Se você recebeu essa newsletter encaminhada considere assinar para recebê-la assim que eu envio. Será ótimo corresponder com você também.
Essa newsletter é publicada periodicamente por Wing Costa, da cidade de Vitória, no Espírito Santo. Entre em contato comigo pelo Twitter @wingosta e pelo e-mail wingcostab@gmail.com