Olá, como você está? Como é bom te enviar novamente uma carta. Como sempre, espero que esta te encontre bem, saudável e em segurança. Por aqui os dias estão estranhos. Algumas crises, muito choro e refrigério constante por parte de Andreia, minha noiva. Desejo menos turbulência ai do seu lado.
.afetos
Em uma lanchonete que poderíamos chamar de estereótipo de lanchonete estadunidense, um sujeito de terno senta-se à mesa. Ele está ali a trabalho e pede uma Coca Cola de baunilha. A companhia do cara de terno pede um milk-shake de cinco dólares. Aparentemente é um absurdo, naquele universo, um milk-shake custar cinco dólares. Deveria ser um absurdo em 1994, quando o filme Pulp Fiction foi lançado. Não sei quanto custa um milk-shake.
Sentados juntos, o cara de terno — Vincent Vega — pede um gole do milk-shake à Mia Wallace, a esposa de Marsellus Wallace, o patrão que pediu ao assassino de aluguel que distraísse a amada por uma noite. A personagem de Uma Thurman não nega. “Fique a vontade”, ela diz. Pulp Fiction é um clássico do cinema “cult”. É daqueles filmes que a pessoa cita para parecer legal numa conversa.
Ainda na mesma cena, Mia explica ao acompanhante da noite um conceito que eu levaria para toda a vida depois de ver o filme.
— Você não odeia isso?, diz a personagem de Uma Thurman.
— Odeio o que?— Silêncios desconfortáveis.
Eu odeio silêncios desconfortáveis. Geralmente falo pelos cotovelos quando me encontro em uma situação em que sinto o mínimo incômodo. Mais tarde no filme Mia Wallace vai contar uma piada terrível sobre tomates atravessando a rua. Mas antes disso, na cena do milk-shake de cinco dólares, ela traduz o que pra mim é o sinônimo de uma relação harmoniosa.
É aí que a gente sabe que encontrou uma pessoa especial. Quando você pode calar a boca e aproveitar confortavelmente o silêncio.
Às vezes eu fico calado pensando em como a minha vida é melhor pelo simples fato de ter uma pessoa com quem dividir confortavelmente o silêncio. Não sei se foram os filmes que também ensinaram isso. Não sei se o desconforto do silêncio extrapola os relacionamentos amorosos e nos leva ao excesso de comunicação a que se atribui o trabalho numa realidade de capitalismo tardio, que depende da supernotificação de tudo que a gente faz - numa lógica de que se eu não meço, eu não gerencio - com o objetivo de ampliar as camadas de controle dos indivíduos para a vida pessoal. Ainda penso sobre como esse excedente informacional transborda os limites do trabalho e transforma pretensos ambientes de diversão, no sentido mais visceral da palavra, como as redes sociais, em plataformas de auto-promoção do valor de cada um enquanto perfil virtual. E como esses perfis refletem automaticamente a tomada de decisões no mundo real, já que tudo pode ser público, tudo pode ser publicizado. Tudo é necessariamente uma potencial publicação que vai nos apresentar como pessoa. E aí quem somos nós? Eu sou o sujeito que segura três crises depressivas chorando no colo da minha noiva ou sou o carinha engraçado dos perfis na internet? Ou sou os dois e um busca no outro a performance necessária para apresentar ao mundo aquilo que o mundo quer consumir. Como o mundo quer me consumir.
Agora numa visão menos trabalhista e mais relacional da reflexão, o quanto todos nós levamos para nossos relacionamentos, sejam eles amorosos ou amistosos ou profissionais, o falatório que busca dar fim ao silêncio constrangedor e a necessidade de perfomance (seja ela no sentido de interpretação ou no sentido de produtividade) para que a relação não “caia na rotina”. Aqui temos um conceito péssimo de rotina, ou pelo menos há o entendimento geral de que a rotina é negativa, já que não nos proporciona doses altas dos hormônios que precisamos para metabolizar o prazer ao corpo. A repetição é vista com maus olhos, como se a busca pelo novo fosse algo necessário para aproveitar qualquer que seja a situação. A diligência pelo mais incrível e divertido e emocionante passou a ser a nova rotina. O movimento virou imperativo quando tudo que a gente pode precisar é de um pouquinho de descanso, já que sem uma paradinha para pegar fôlego, as crises parecem acontecer com mais frequência, numa tentativa de manter a relevância durante as mudanças do mundo. Mas será que o mundo está mudando para melhor quando a impressão é de que os momentos de silêncio confortável estão deixando de existir?
.polaroid
Essa foto foi feita pelo fotógrafo chinês Li Huaifeng e recebeu o nome de “Taste”. A imagem ganhou o prêmio Pink Lady de fotografia gastronômica de 2021. Eu não conhecia o prêmio, mas a foto dessa família chinesa de Licheng, na província de Shanxi, consegue passar para mim o tipo de silêncio confortável sobre o qual conversamos nessa carta.
.tchau
O que te deixa confortável? Se você quiser continuar essa conversa é só responder essa carta como um e-mail normal. Eu vou gostar muito de saber sua opinião! Se você chegou até aqui por um link ou encaminhamento, que tal se inscrever para receber mais cartas como essa?
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Eu sou o Wing Costa e vivo em busca de silêncios confortáveis, como você acabou de saber.