Olá, pessoas que recebem essa carta. Sempre que lembro que vocês escolheram receber e ler inopinadamente algumas dos meus pensamentos em fluxo, agradeço mentalmente. E tenho pensado cada vez mais nisso.
As aberturas das cartas estão cada dia mais esquisitas, né? Começo a escrever e logo em seguida percebo que já parece uma despedida. Não é uma despedida. Acompanhe.
.mundos
No meio do processo de escrever essa correspondência conversava com um amigo em um programa de conversar com pessoas por computador. Comunicadores virtuais? Como podemos chamar o Discord (uma espécie de Skype que se popularizou no mundo dos games e agora serve de plateia virtual em alguns shows em transmissões ao vivo e gravações de podcast). Estou achando curioso documentar a usabilidade da internet dos novos anos 20, parece que em algum futuro com algum tipo de acesso ao arquivo da internet do mundo pode achar isso aqui e pensar “caramba olha só como os idosos se comunicavam”. Me sinto um pouco adiantando o serviço de arqueólogos digitais, uma profissão que com certeza existirá no porvir.
Enfim, conversava pelo Discord com meu amigo Matheus, que parou momentaneamente o bate-papo para tomar um comprimido de vitamina D. Lembrei automaticamente de um filme genérico de Matrix estrelado por Christian Bale chamado Equilibrium. Nesta obra prima do entretenimento Sci-Fi - não tenho certeza se chega a ser Cyberpunk, para surfarmos numa onda do momento - de 2002,
A história se passa em um futuro distópico, após uma terceira, e destruidora, guerra mundial. A sociedade é controlada por um regime totalitário, que obriga a população a tomar uma droga chamada Prozium que anestesia emoções, prevenindo tensões sociais. John Preston, o protagonista, é um membro da instituição que mantém a ordem e para de tomar o remédio.
Nossa vida natural passa a precisar de suplementação de nutrientes que metabolizamos pegando sol. A vida nos cubículos climatizados e no trânsito de elevadores e na alimentação congelada para otimizar o tempo cobrou um preço alto durante todo o período pandêmico e segue cobrando com juros o ágio da evolução do ser humano para o próximo regime. Há em mim a impressão de que chegamos a uma esquina muito traiçoeira da história. O Espírito do tempo nos colocou numa sinuca danada sem qualquer sinal do Baianinho de Mauá, o bruxo da sinuquinha, para ajudar.
Eu colei esse desenho do @davidshrigley antes de escrever o trecho até aqui, acho que a energia do desenho encharcou a caixa de texto e tudo que eu escrevesse até aqui me levaria a entregar à História, com H mesmo, o papel de cavalo selvagem e arredio. Ela segue a direção que vai seguir e cabe a nós nos equilibrarmos no lombo sem sela do animal indomável do tempo.
Voltando ao filme Equilibrium, e aqui eu peço desculpas pelo spoiler de uma obra de 20 anos atrás, a gente se depara com um futuro distópico bigbrotheriano (não o programa global) cujo governo autoritário encontrou a forma perfeita de controlar as pessoas. O fim das emoções. Todo mundo se veste meio de cinza e todo mundo fica fazendo cara de paisagem o filme todo, inclusive o Christian Bale enquanto luta com uma arma numa mão e uma espada na outra em cenas de ação coreografadas de uma maneira terrivelmente satisfatória. É um negócio meio precursor da ação de John Wick, se me permitem a extrapolação. Mas eu não sou crítico de filme e não quero gerar qualquer expectativa sobre o filme ou sobre minha opinião acerca do filme.
É curioso eu ter lembrado desse filme, parece que ele sempre esteve aqui no meu subconsciente me dizendo que aparentemente a gente está no caminho para a sociedade apresentada em Equilibrium. É bom a gente deixar combinado aqui que eu sou impressionado com essas coisas. Vejo Karatê Kid e quero sair por aí quebrando tábuas com as mãos e criando lindos bonsai. Isto posto, a suplementação vitamínica do meu amigo me assustou pela normalidade com que tratamos na conversa. É a mesma normalidade com a qual temos tratado estabilizadores de humor e inibidores seletivos de recaptação de serotonina entre outros nomes incríveis para remédio. Eu tomo remédios, ou tomei por um bom tempo (não vou tratar isso como uma página virada ainda). E todos os dias me pego em um impasse. É ótimo que falemos mais sobre a saúde mental das pessoas que vivem nesse espaço-tempo. É péssimo que a saúde mental seja tratada de maneira individualizada e medicamentosa ao ponto de me lembrar desse filme. Acho que preciso revê-lo, vai ser uma experiência incrível.
Em Equilibrium os rebeldes são aqueles que não tomam o remedinho. Vou deixar aqui o aviso de gatilho para caso você tome remédios para qualquer dificuldade que você tenha encontrado em toda sua trajetória. Remédios podem fazer bem e ajudar a enfrentar essa barra que o capitalismo tardio nos apresenta diuturnamente. Mas é importante a gente tentar, num esforço coletivo, entender até onde eles estão substituindo formas mais amplas de tratamento e até onde o novíssimo discurso para que encontremos soluções individuais e “autocuidados” não está solapando a necessidade do pensamento de maneiras conjuntas de nos rebelarmos contra os remédios que nos enfiam goela abaixo.
Na cena, o policial do remedinho Christian Bale analisa uma série de instrumentos contrabandeados (coisas que nos fazem sentir sentimentos) e ouve, pela primeira vez, uma música de Beethoven. E aparentemente, não lembro se medicado ou não, sente sentimentos.
.tchau
A velocidade com a qual eu enxergo o mundo já foi muito maior do que é hoje. Eu percebo uma dificuldade em acompanhar o ritmo dos acontecimentos. Todos eles. Eu busco informação sobre produção e distribuição de newsletter enquanto leio algum artigo sobre marketing digital e a tevê ligada em qualquer coisa que me desperte curiosidade me impele à ideia de ter um caderninho sempre a mão. Não sei quando vai passar algum cantão misterioso do mundo com uma formação rochosa específica que vai conectar, através de algum desvio nas rotas dos neurônios, com uma lembrança dos tempos em que ficava só olhando os outros garotos jogarem bolinha de gude.
Essas conexões pouco prováveis acontecem também no Gato com Chapéu de Alumínio, podcast produzido com muito carinho em parceria com a artista incrível Leila Kelly. A notícia é que o Gato voltou. Se você gosta de ouvir histórias em podcast não deixe de acompanhar por lá.
Se você gosta de receber essas cartas e os assuntos e questões conversam diretamente com você, eu fico muito feliz de continuar essa conversa. É só responder à carta como você responderia qualquer e-mail.
Algo que me ajuda muito a continuar trazendo esse tipo de reflexão completamente infundada, mas que faço com muito carinho, é o compartilhamento dessa correspondência. Considere encaminhar este e-mail para um amigo, eu vou ficar muito feliz. Você pode também compartilhar nas suas redes sociais e me procurar por lá para dizer em público o que achou, que tal?
Essa carta foi escrita em pelo menos quatro dias diferentes e eu não tenho uma grande confiança no meu poder de condução da narrativa através do tempo, então se ficar muito confuso, lembre sempre que eu sou o Wing Costa. E que você já sabia disso.