Olá você que lê!
Hoje são três de janeiro do ano da graça de dois mil e vinteum. Hoje é o primeiro dia que sinto fome em mais de dez dias passados. Peguei a doença da pandemia. Está tudo bem por aqui e eu sinceramente nem queria falar que peguei. O dia em que te escrevo é o décimo segundo dia desde o primeiro sintoma, uma leve coriza. Não quero que essa carta seja sobre isso, apesar de os últimos dias terem sido absolutamente sobre isso.
Senti dor no corpo, dor de cabeça como um soco bem dado na cara e perdi olfato e paladar. Os sabores doces estão voltando mais rápido que os salgados. Não tive muita fome nesses dias, mas guardei os horários de comer e bebi muita, muita água. E algum suco de inhame, couve e limão. E também vitaminas de banana e mamão com leite de coco.
Você ainda passa roupa? Acho esse um hábito muito antiquado e por isso com muita frequência saio bem amarrotado de casa. Acho que não é muito bonito, mas o que é bonito nesses tempos obscuros, não é mesmo? Existem alguns hábitos que eu gostaria de adquirir. Não o de passar roupa. Não sei como fazer. Eu às vezes fico muito triste e choro, esse é um hábito que eu tenho. Geralmente é alguma lembrança da minha mãe ou do meu avô, alguma forma de me conectar com eles, acho. Neste dia quatro, quando você provavelmente estará lendo esta carta, será aniversário da minha mãe. Fico um pouco emotivo quanto a isso. Geralmente vou ao cemitério nesta data. Vou também no dia de finados. Gostaria de ir no aniversário do meu avô também, mas não sei se é em junho ou julho. Sempre pergunto, sempre esqueço.
Sobre memórias, hoje me fizeram lembrar os horrorosos filmes dos anos noventa baseados em jogos de videogame. Mortal Kombat é um clássico do Cinema em Casa, antigo programa vespertino de filmes do SBT. Street Fighter também era um clássico, mas de sessões de cinema mais noturnos do canal. O SBT passava muito esses filmes terríveis, acho que pode ter a ver com orçamento. Contudo nenhum deles supera o tenebroso filme de Super Mario. Lembro de ler uma grande reportagem sobre como ninguém que fez esse filme quer lembrar sequer da existência da obra. O roteiro foi modificado diversas vezes e tudo no filme parece malfeito. Teve muito dinheiro envolvido e a história se passa num mundo sombrio meio pós-apocalíptico, deve ter alguma coisa a ver com algum sucesso dos filmes meio cyberpunk da época, um pouco de Blade Runner aqui, uma pitadinha de Mad Max ali e muito dinheiro prometiam um grande sucesso, já na carona do sucesso atemporal do jogo. Tudo deu errado.
O vilão era um homem de terno representando as grandes corporações daquele mundo de metal e neon. Ele era, de alguma forma, descendente de dinossauros. Os capangas eram criaturas reptilianas (não os extraterrestres das teorias da conspiração) bizarras com cabeças encolhidas. Até o simpático Yoshi era um pequeno Tiranossauro. Os atores brigavam no set, o monte de figurantes esperava estressado, o diretor não sabia para onde estava ventando. A promessa de fracasso estava por toda parte.
Assisti esse filme mais do que gostaria de me lembrar. Eu era uma criança e continuei depois juventude adentro uma criaturinha que acordava muito cedo. Quatro da manhã cedo. O que tinha era a televisão, que ou tocava o hino nacional com imagens de uma bandeira do Brasil ondeante ou passava o segundo filme do Corujão. Ou seu equivalente do SBT. E nesses, o tenebroso filme do Mário.
Na mesma leva de filmes terríveis, além dos já listados Mortal Kombat, Street Fighter e Mario, estão Double Dragon e Tartarugas Ninja. Também perdi a conta das vezes que assisti isso.
Não sei como a primeira carta do ano veio parar em um assunto tão estranho e específico, mas estou contente de escrever essa carta. Fiquei todo esse tempo em casa aplacado por um sentimento terrível que me fez não querer assistir, ouvir, jogar ou ler qualquer coisa. Esse sentimento incapacitante me rondou por todas as vezes que eu pensei em escrever qualquer coisa. É bom tirar isso da cabeça e do peito. Espero poder estar presente aqui durante esse novo ano.
2020 foi terrível em diversos aspectos, mas eu tenho que confessar que acho engraçado toda vez que depositam (e eu também faço muito isso) sentimentos em um ano específico. Toda vez que uma pessoa famosa morreu neste ano a internet se inundou de comentários atribuindo a desgraça ao ano. Eu lembro a primeira vez que pensei “ano desgraçado”. Foi 2017, estava chovendo e eu recebi uma ligação que informava a morte do Belchior. 2017 foi um ano de merda. Terminou bem para mim, mas foi difícil. O que eu quero dizer aqui é que desde que eu comecei a reparar na carga atribuída aos anos eu tenho automaticamente o pensamento de que o ano não tem nada a ver com isso. O conjunto de dias que formam esse todo não é culpado de nada, mas deve fazer bem culpar algo cuja data de morte já sabemos. É ótimo também que seja possível criar boas expectativas, encerrar ciclos, começar novos ciclos. Desejo que esse ano seja mais gentil com todos nós.
Essa foi uma newsletter atípica. Eu sou o Wing Costa e também detestei 2020. Mas você já sabia disso.