Olá, como vai você? Espero que bem, por aqui as loucuras não param de acontecer, esqueço chave para um lado, me prendo dentro de casa para outro, atropelo senhoras idosas ao tropeçar na rua, mas tudo está na mais perfeita ordem. Sendo a ordem o completo caos.
Hoje quero oferecer uma experiência diferente para todo mundo: diferente para mim, que escrevo essas cartas, diferente para você, que as recebe, e diferente para minha amiga Brunella Brunello, escritora talentosíssima (tanto no pessoal quanto no profissional) do ótimo livro Bárbara, entre outras coisas, que estreia uma CARTA RESIDENTE, a primeira residência de escrita em uma newsletter do país rsrs. Abaixo uma carta dela para mim e para você.
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Ao vencedor, as batatas
Há duas tribos famintas disputando um campo de batatas. A vencedora será capaz de comer as batatas, obtendo energia e garantindo sua sobrevivência para superar a travessia de uma montanha, encontrando, do outro lado, mais campos de batatas.
Essa parábola resume a filosofia do Humanitismo, criada e difundida por Quincas Borba, personagem de Machado de Assis que aparece no livro homônimo e também em Memórias póstumas de Brás Cubas. Em Quincas Borba, o livro, o personagem Rubião herda a fortuna de Quincas Borba, o homem, mas termina a vida novamente pobre e doente, após a traição de um casal de amigos, que o rouba.
Quincas Borba, o filósofo, sintetiza sua teoria: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas!”.
Batata inglesa?
Hoje base da alimentação de boa parte do mundo, as batatas não existiam no continente europeu pelo menos até o século XVI, entrando por portos na Espanha e na Inglaterra. O cultivo da batata foi se disseminando aos poucos no continente, substituindo a cultura do nabo e da rutabaga (que é um tipo de nabo). A batata tinha uma série de vantagens, entre elas o bom fornecimento de energia, a resistência ao clima, o baixo desperdício da plantação, o baixo preço e uma menor taxa de deterioração, e a consequência de seu cultivo foi evitar que milhares de pessoas morressem de fome.
Mas de onde ela veio?
Da América do Sul, onde é cultivada há mais de 10 mil anos. Antes da chegada de Colombo às Antilhas, as dietas da Europa, África e Ásia desconheciam batatas, tomates, milhos, pimentas, mandioca e uma série de outras plantas nativas.
E sempre que eu penso na filosofia do Humanitismo, imagino povos originários da América do Sul e colonizadores europeus brigando para atravessar a Cordilheira dos Andes por uma plantação de batatas.
Você consegue imaginar a culinária de países como a Espanha sem batatas e tomates? Porque, quando eu penso nisso, a frase “Ao vencedor, as batatas!” me confere uma imensa melancolia.
Bienal de Veneza
Reza a lenda que Lina Bo Bardi homenageou as formas das batatas brasileiras na fachada do bloco esportivo do Sesc Pompeia. Ao observar essa fachada, as pessoas poderiam ver, considerando a ideia da imagem de um corte em perfil, as janelas irregulares como batatas sob o solo, que seria o bloco de concreto.
Eu adoro essa história, mas parece que é só lenda mesmo. Em Lina: uma biografia, lançada recentemente pela editora Todavia, Francesco Perrota-Bosch conta, sobre essa construção, que Lina decidiu colocar no projeto formas orgânicas para as janelas. Ela fez vários desenhos dessas formas orgânicas, depois selecionou os melhores para criar os moldes. Para minha decepção, nenhuma batata foi mencionada na biografia.
Lina Bo Bardi foi uma arquiteta italiana que viveu a maior parte da vida no Brasil, e aqui se naturalizou e realizou seus mais relevantes trabalhos, entre eles o Sesc Pompeia e o prédio do Masp, ambos em São Paulo. São dela também a restauração do Solar do Unhão, em Salvador, e o projeto de revitalização do centro histórico da capital baiana que não chegou a ser inteiramente executado. Eu sou fascinada pela obra dela e recomendo não só a visita a esses prédios, se você tiver a oportunidade, mas também a leitura da sua biografia.
O conjunto arquitetônico do Sesc Pompeia é considerado sua obra-prima, e foi recentemente eleito pelo The New York Times como uma das 25 obras arquitetônicas mais importantes construídas após a Segunda Guerra Mundial (https://www.nytimes.com/2021/08/02/t-magazine/significant-postwar-architecture.html). Nesta semana, Lina recebeu o Leão de Ouro Especial in memoriam, na Bienal de Veneza. (https://www.labiennale.org/en/news/awards-17th-international-architecture-exhibition)
História que a Bíblia não conta
Ao desembarcar no Velho Continente, a batata enfrentou uma inicial resistência da população por sua “aparência rústica”. Também acreditava-se que a aparência dos alimentos indicavam o que eles poderiam causar nas pessoas e, para aquelas pessoas, as batatas se pareciam com as mãos de leprosos.
Ainda, por serem um alimento que não é mencionado na Bíblia, as batatas eram consideradas maléficas — chegaram a dizer que ela dava às bruxas o poder de voar. Então, por muito tempo, as batatas foram utilizadas para alimentar animais, pessoas encarceradas e navegadores. Mas, no caso da alimentação dos navegadores, eram consideradas um “mal necessário”, porque resistiam por muito tempo durante a viagem, sem estragar.
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Frederico, o grande marqueteiro
Dizem que Frederico, o Grande, que governava a Prússia, era um entusiasta do cultivo da batata, mas enfrentou resistência dos agricultores à época. Ele teve a ideia, então, de colocar guardas reais vigiando um campo de batatas. Assim, as pessoas pensavam que as batatas eram valiosas e roubavam nosso tubérculo sul-americano, passando a cultivá-lo.
Não há provas de que essa história é real, mas eu prefiro acreditar que sim.
Se não têm pão, que comam brioches
Consta nos livros de história que essa frase foi proferida por Maria Antonieta, ao saber que o povo reclamava por não ter pão para comer. Não há registros provando que ela de fato disse isso. Entre a fome dos franceses e a guilhotina que encerrou a vida da última rainha da França, houve um período de enorme tensão social, com uma extensa produção e publicação de histórias muito, muito ruins sobre ela.
Mas o que exatamente essa frase significa? Um pão, essencialmente, é feito de farinha, água e tempo (se você estiver sem tempo, pode usar fermento, mas a fermentação é um processo que acontece naturalmente). Já o brioche é um pão que, além de trigo, leva leite, manteiga e açúcar, sendo considerado muito luxuoso naquela época. A frase atribuída a Maria Antonieta, então, denunciaria um desprezo da rainha em relação à fome do povo, bem como uma completa desconexão com a realidade desse povo.
Talvez, uma falta de entendimento sobre a ironia dessa frase tenha feito com que várias pessoas acreditassem que Maria Antonieta, na verdade, tivesse dito: “Se não podem comer pão, que comam batatas!”, no sentido de que as batatas eram mais abundantes, mais baratas e bem, bem menos nobres do que o trigo.
French Fries
A receita das batatas cortadas em palitos e fritas por imersão em óleo quente foi criada numa região da Bélgica que, na época, pertencia à França.
O médico Francês Antoine Parmentier foi um entusiasta estudioso das batatas e publicou um livro comprovando seu valor nutricional, em 1774. Aparentemente, ele comeu muitas batatas enquanto foi prisioneiro da Prússia, aquela governada por Frederico, o grande marqueteiro.
Apesar da inicial resistência das pessoas, o rei Luís XVI estimulou a produção de batatas na França e, em mais uma ação de promoção do nosso tubérculo, a rainha Maria Antonieta usou um cocar feito de folhas de batatas em um baile à fantasia.
Ao vencedor, os brioches
Diferentemente da frase “Se não têm pão, que comam brioches”, não há dúvidas sobre a veracidade da história do cocar, que deveria ser suficiente para todo sul-americano se sentir vingado pela guilhotina que pouco depois caiu sobre o pescoço de Maria Antonieta.
Eu decidi contar toda essa história porque a frase da Maria Antonieta ficou ressoando na minha cabeça, quando o atual ocupante do cargo de presidente da República Federativa do Brasil disse algo do tipo “Se não têm feijão, que comprem fuzis”.
E, ao pensar que talvez meu sentimento sobre isso possa se relacionar com o dos franceses no final do século XVI, me pergunto se, quando — sob os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade — tomaram o país, dissolvendo a monarquia e os privilégios da aristocracia e da Igreja, eles não reclamavam também pela autonomia da sua cultura alimentar.
E o resto é história. Ao vencedor, os brioches! E, quem sabe um dia, um prato de feijão.
Para ler:
Quincas Borba, Machado de Assis
Lina: uma biografia, Francesco Perrota-Bosch
Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum, Stefan Zweig
Para fazer:
Aprenda a fazer feijão:
Aprenda a fazer brioche:
Sopa de batata é janta sim:
Mas, se você discorda, tudo bem:
.tchau
Essa foi uma carta proporcionada pela residência de escritores de cartas virtuais com a luxuosa participação de Brunella Brunello. Você poder responder essa carta como a um e-mail normal. Diga para a gente o que você achou do texto de Brunella, que deve aparecer com mais frequência em uma espécie de coluna por aqui, diga também se achou isso uma boa ideia.
Se você achou isso uma boa ideia, assine a newsletter para receber mais dessas loucuras, agora também compartilhadas. Você também pode demonstrar seu interesse em comprar o livro de Brunella, Bárbara, como resposta à essa carta.
Apesar de não ter escrito esta carta, eu sou o Wing Costa, mas você já sabia dessas duas coisas.