Ei, como vai você? Domingo me pareceu um dia bom para escrever por aqui. Talvez esta carta chegue na segunda ou na terça-feira. Você acha que tem um dia melhor pra ela chegar? Agradeço demais se puder responder este e-mail com essa resposta e o que mais você quiser.
Ancestral
Eu li em algum tuíte por aí que Gilberto Gil é um ancestral vivo. Conheço pouquíssimo a obra de Gil — me parece falta grave —, mas estou adorando conhecer da forma como aconteceu no domingo em que escrevo essa carta. Neste domingo Gil completa 80 anos. O programa dominical de entretenimento da Globo promoveu um especial sobre o artista. Uma espécie de novo Arquivo Confidencial com muito mais dinheiro. No programa, parte da imensa família de Gil se apresentou entre homenagens. Preta Gil cantou, filhos e netos tocaram com a banda Gilsons. De repente um corredor se abriu, decorado como um céu claro com nuvens. Luciano Huck indicou a Gil o caminho entre uma fumaça em direção ao céu cenográfico. “Pode ir, não tem degrau, depois eu vou”. Depois do corredor sem degraus, a produção do programa tinha preparada uma réplica da casa em que Gilberto Gil passou dos 8 aos quase 20 anos. Casa da avó, eu acho. Ali naquela memória replicada, Gil caminhou e se lembrou das coisas daquele tempo. Depois toda a família foi junto comer doce e queijo. Andreia, com quem eu assistia o programa, comentou sobre uma série do Gil na Amazon, “Em Casa com os Gil”. Nessa mesa de café numa réplica de memória alguém ali disse que Gil era uma existência gentil. Esse adjetivo impregnou a minha cabeça. Não saiu até que eu conseguisse escrever isso aqui. Fomos assistir “Em Casa com os Gil”.
A série é meio um reality de construção do repertório de uma turnê em que todos participarão. Ali tem esposa, filhas e filhos, netas, nenéns, noras e uma grande quantidade de pessoas de cabelo colorido. A série mostra muito uma árvore genealógica que parte de Gil, mas dá importância enorme aos pais, aos avós e etc. como diz uma música do próprio Gil que conheci nesse domingo. Depois daquele monte de brincadeira musical entre uma família de múltiplos talentos, em que todo mundo toca um instrumento e canta de repente enquanto crianças correm e gritam pelos quintais e corredores. Tem a Bela Gil fazendo um rango vegano boladíssimo e tem uns parente reclamando do rango vegano boladíssimo da Bela Gil. Parecia meio que a materialização do Brasil naqueles folhetos de testemunha de jeová. Andreia e eu tivemos a mesma impressão: sem Gil nada daquilo existiria.
E o programa me pareceu exatamente isso, um reconhecimento de Gilberto Gil como um ancestral brasileiro vivo. Uma Grande Pessoa. É uma delícia “descobrir” isso agora. Minha visão sobre Gilberto Gil sempre foi respeitosa, mas muito distante. Lembro vagamente dele ministro da Cultura. Foi emocionante aprender sobre um grande brasileiro no domingo na televisão. Depois ainda teve homenagem ao Gilberto Gil no Fantástico (além de uma matéria incrível sobre dinossauros na Patagônia).
É muito importante para mim poder estar vivo para ver um sujeito como o Gilberto Gil ser homenageado na televisão. Me dá uma pitada de esperança num futuro em que todas as famílias vão poder ser felizes com toda a diversidade que existe. Famílias pretas com ancestrais vivos. Famílias brasileiras vivas e presentes. Como aquela família, desse homem que tem a consciência de que vai se tornar um espírito digno de devoção, um iluminador de caminhos. Uma existência gentil.
Existência hostilizada
Tem sido difícil ser brasileiro de um modo geral. Entretanto, muito mais difícil para uns que para outros. A semana que passou foi especialmente terrível para as mulheres. Não que as outras não sejam, eu nem devia estar falando sobre isso aqui, eu acho. Mas li algo que achei importante compartilhar nesse momento. O que li foi na ótima newsletter “The Marginalian”, de Maria Popova. Um breve ensaio sobre direitos reprodutivos no livro Frankenstein, de Mary Shelley.
No livro, Victor Frankenstein produz uma criatura e, ao dar vida a ela, foge horrorizado. A criatura, abandonada e melancólica, se torna fora de controle. O médico abalado tem uma existência miserável e um fim trágico. Enfim, tudo isso que a gente sabe sobre Frankenstein.
Este livro foi escrito por uma mulher de 18 anos que viveu no início do século 19. Uma mulher que já tinha perdido um filho quando escreveu esse livro. Que deu a luz quatro vezes e viu três das crianças morrerem antes de chegarem à adolescência.
O tema do aborto tem sido discutido também nos Estados Unidos, porque a Suprema Corte do país revogou o direito ao aborto. Aqui no Brasil o tema aparece com muito mais violência envolvida. De todas as formas possíveis. Todas direcionadas às mulheres. É devastador perceber como o mundo tem sido conduzido para ser hostil a essa existência. É terrível observar como essa máquina opera para a produção de opressões diversas. Com muita tristeza no coração por tudo isso, deixo a recomendação de leitura que parece acrescentar.
Pequenas dicas para a semana:
Em Casa com os Gil, óbvio.
Umbrella Academy voltou, vi apenas um episódio. Até aqui está tão nonsense quanto sempre esteve, com o agravante de um episódio musical logo de cara. Eu até gosto, inclusive. Dá um gostoso sentimento de vergonha. Vi recentemente um tuíte defendendo episódios musicais. Acho que o motivo foi um episódio musical na nova temporada de The Boys.
Assista The Boys, é legal ver as coisas no hype. Os memes começam a ficar engraçados.
Beba muita água, no tempo mais frio a gente acaba esquecendo
Até logo
Minha ideia é sempre trocar referências, então se vocês tiveram impressões diferentes sobre os mesmos assuntos, ou impressões parecidas em assuntos diferentes, me responde este e-mail!
Me parece que estou chegando num formato quase interessante para esta newsletter. Com sessões mais claras, talvez eu invente umas modas pelo caminho, mas aí eu queria te pedir ajuda. Na sua resposta, pode me dizer também o que achou? Sua opinião é importante para mim.
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Olá, Wing. Aí vai uma recomendação de podcast (eu particularmente tinha uma rejeição razoável em relação a podcasts, mas este em particular me chamou muito a atenção pois fala sobre música, um assunto que eu sou entusiasta)
https://open.spotify.com/episode/2kXh36mN7P3jiAyO3ZvIbX?si=a0f7b32364414026
Se trata de um apanhado de informações sobre grandes discos da música nacional e internacional e neste episódio fala sobre Tropicália ou Panis et Circensis que teve grande participação de Gil.