Você já viu alguém passear com passarinho?
Um título grande e misterioso para uma carta, não é mesmo?
Bem-vinda Amizade,
chegamos a setembro. Com o a chegada do mês, se aproxima também o momento de publicar Earth, Wind And Fire nos nossos feeds, do you remember? Que tal a gente tirar esses dias de setembro até a vigésima primeira noite para contemplar essa obra de arte, talvez fazendo o que diz a letra, só conversa fiada e amor. Traduzi livremente “blue talk” para conversa fiada porque não encontrei um significado único que se encaixasse bem na letra de September, então vamos fingir que é isso nessa carta, tá bem?
Quando eu tinha lá pelos meus 17 anos eu escrevi em algum lugar que a liberdade é uma gaiola muito grande. Hoje não sei bem o que eu quis dizer com isso lá naquele escrito apócrifo, nessa época gaiolas faziam parte da minha vida e eu não sabia bem o que era liberdade. Não sei bem o que é liberdade até hoje. É uma palavrinha sacana, a correspondência de hoje está especial em não achar significados satisfatórios. Mas você aí que está me lendo, tem um bom significado para a liberdade? Nós somos livres. Nós somos livres? Te convido a pensar bem sobre o que você pensa quando pensa em liberdade. Será só um sonho dourado num dia brilhante?
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É curioso perceber como eu faço parte de uma geração pouco capacitada para lidar com o contraditório. O negativo. Pensamentos diferentes dos nossos já são motivo de estranheza. Talvez de rechaço. O que até faz algum sentido, porque nós - eu e você aqui nessa conversa virtual - estamos certos, é claro.
O que acontece conosco nesse impacto entre aquilo que acreditamos ser o certo e uma ideia que vem no sentido contrário? A reação rápida e mordaz dá fim àquele sentimento, que para fins de citar o ensaísta coreano Byung-Chul Han, vamos chamar de negatividade. Me parece que as crianças dos anos 90 e 00 não sabem lidar muito bem com esse impacto negativo. A própria utilização da palavra já nos atinge de uma maneira cáustica. O que nos levou a enfrentar tão diametralmente o negativo, o oposto, o contraditório? Estou evitando esbarrar no termo “dialética” por aqui porque nunca me debrucei o suficiente nele para que eu conseguisse encaixar de maneira satisfatória nesse fluxo de pensamento que encaminho semanalmente. No entanto, voltemos às nossas reações ao negativo.
Se tudo que vem do outro diferente daquilo que eu já penso é necessariamente descartável, todas essas ideias passam por mim sem que eu ofereça resistência. Ao não permitir o impacto do negativo, parece que a gente se enche de nós mesmos. Se eu não permito qualquer interrupção do que eu não sou, minha vida passa a ser eternamente o que ela já é. Caramba, que parágrafo confuso. Talvez o que eu quero dizer aqui é que a minha geração é muito deficiente em encontrar seus inimigos, suas batalhas. Dessa forma a gente acaba identificando a nós mesmos como esse inimigo, mesmo sem perceber.
Para tentar esclarecer um pouco mais vou voltar para as gaiolas de vovô. Ele criava canários belga, alguns coleiros e, com menos frequência, bicudos. Eu passava horas do dia soprando alpiste, trocando pequenos recipientes de água e limpando fundos de gaiola. Acho que essa era a única coisa que meu avô me pediu em toda a vida. E eu detestava. Mas meu desagravo para aquilo era direcionado. Eu sei que existia uma ordem ali. E essa ordem não partia de mim. Mas ela parava em mim. E eu desgostava. E mesmo assim fazia.

(Acima uma imagem aleatória após busca por “passear com passarinho” no Google)
Eu vou acabar falando sempre sempre sobre a minha geração, essa turma entre os 20 e os 35, sei lá, nunca sei quais são as barreiras geracionais. Então vamos lá, minha geração (e não vou me desdobrar aqui no porquê disso) foi levada a buscar prazer no soprar dos alpistes e na limpeza dos fundos de gaiola. Transformou o trabalho na procura da felicidade e tenta satisfazer seus instintos de prazer em atividades. Dentro dos nossos cubículos enfeitados com nossos computadores e celulares personalizados com nossos próprios papéis de parede nós retiramos “o outro” da equação. A figura do chefe não aparece como apontador de uma direção (e portanto desaparece como alvo das frustrações). Você é seu próprio chefe agora. Você é um empreendedor de você mesmo. Você está livre do outro. Você é livre para decidir a direção daquilo que você cria ou produz ou entrega. Sua liberdade se tornou uma série de ordens autoimpostas. Você está preso numa gaiola. Você odeia você mesmo por isso. Você está cansado e solitário. Você não está mais cansado do seu chefe te dizendo o que fazer e por isso se encontra com amigos para beber e falar mal do que quer que seja. Você está cansado de você mesmo. E não há lugar no mundo para onde ir.
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Aquele artista misterioso dos pixo de protesto, o Banksy, financiou um barco para resgatar refugiados no Mar Mediterrâneo. O nome do barco é Louise Michel, em homenagem a uma feminista anarquista francesa. O barco é pintado de rosa e de um monte de obras de arte do próprio Banksy. Algumas reportagens falam que o barco, com menos de uma semana no mar, já resgatou mais de 80 pessoas.

Eu cometi um erro primário da internet que foi ler os comentários. Muitas pessoas, muitas mesmo, consideraram ruim a atitude do artista. Disseram que o resgate de pessoas a deriva tentando fugir de uma realidade que as oprimia era na verdade um incentivo ao tráfico de seres humanos. Consideraram tráfico de seres humanos tirar pessoas de um bote no meio do Mar Mediterrâneo e coloca-las num barco, que leva as pessoas resgatadas ao porto mais próximo. Mas essas pessoas não são europeias. Então os europeus que comentavam automaticamente não gostavam delas. A figura dos imigrantes foi por muito tempo associada ao terrorismo. Um dos últimos limiares da negatividade, do outro como inimigo provável a qualquer momento. Agora não mais. O medo foi substituído por outro sentimento. Um menos agressivo assim de bate-pronto. No livro A Sociedade do Cansaço, um livrinho roxo safado difícil demais que eu leio e releio sem entender nada, o coreano diz que os imigrantes ou refugiados são considerados antes como um fardo do que como ameaça. Entre outras reflexões sobre como vivemos uma sociedade do desempenho que nos adoece pelo excesso de nós mesmos. Como você se vê e como você vê o outro?
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Adeus
A presente epístola começou a ser escrita ao som de Jorge Ben depois o YouTube rolou por músicas aleatórias do Earth, Wind And Fire. Muitas anotações sobre os assuntos dos quais eu falei por aqui ou ainda falarei agora são feitas em uma caneta com formato de garrucha escrito “Lemb. de São Luis - MA” que me foi presenteada pelo amigo André, que deixou o Espírito Santo e mora nesta outra capital-ilha. Eu sigo em Vitória e sou o Wing Costa, mas você já sabia disso.