Olá, espero que esta carta te encontre bem depois de tanto tempo. Escrever é um processo que me requer um esforço, apesar de eu gostar muito e achar importante para o desenvolvimento de uma consciência saudável. Um amigo querido comparou as cartas com terapia. Às vezes eu falto, às vezes eu lembro em cima da hora, mas eu volto. Eu sempre volto.
.mundos
Estamos no começo de julho. Escrevo esta carta no dia cinco. Dia em que fui atingido bem no meio da testa enquanto andava pelas esquinas nimbosas do twitter por memes de Julio Iglesias. Se o dia cinco de julho fosse uma playlist, como ele está se apresentando para mim neste momento enquanto escrevo, a capa da playlist com certeza seria um meme do Julio Iglesias.
Esta playlist começa com músicas B-Side dos Arctic Monkeys. Minha noiva querida — já se aproxima o casamento por aqui — começou a ouvir mais a banda por agora e volta e meia cantarola algo. Comecei com The Bakery, segui para participações de Miles Kanes a partir de Little Illusion Machine (Wirral Riddler), uma música muito melhor que a que entrou no disco (The Hellcat Spangled Shalalala). Durante a escuta ativa dessa playlist maluca eu cheguei a conclusão de que Evil Twin, b-side da música que dá nome ao criticado Suck it and See, é uma personagem de Cornerstone, canção belíssima do melhor álbum Humbug.
Na letra da música, o mocinho volta para casa sentindo o cheiro da amada enquanto encontra uma pessoa igual a ela, ou pelo menos que o faz lembrar com muita vividez. Ela resiste às investidas do rapaz em localidades diversas, principalmente porque quando o encontro parece se tornar mais e mais real, ele a pede para chamar com o nome “dela”. Que julgo ser uma irmã (agora gêmea) que teria morrido. Irmã da mulher que nosso protagonista encontra várias vezes. Eu não consigo explicar essa teoria sem me embolar, espero que tenha sido inteligível até aqui. É o arcticmonkeysverso.
.afetos
Lembro de ler em algum momento entre o fim do ano passado e agora a história de “ataques” de baleias orcas a barcos pesqueiros na costa de Portugal e Espanha. Esse grupo de “baleias assassinas” estariam golpeando os navios, causando pavor à tripulação. Quem lê essa carta ou me conhece com alguma proximidade sabe que eu odeio filmes de mar. Apesar de baleias e animais aquáticos em geral aparecerem com frequência por aqui, mas divago. Esse grupo de baleias assustou pescadores e velejadores no Atlântico com um comportamento considerado não usual. Rapidamente levantou-se motivos para as atitudes pouco ortodoxas dos grandes mamíferos, identificados por Gladis Branca, Gladis Negra e Gladis Cinza (parte de um grupo maior de seis ou sete gigantes marinhas). Primeiro o grande cardume ou o conjunto que se dá ao grupo desses cetáceos (se você sabe o nome envia como resposta neste e-mail?) estaria atacando os pescadores porque os trabalhadores do mar estavam pescando predatoriamente o peixe preferido dos animais. Então eles ficaram putaços e foram tirar satisfação.
Outra hipótese seria a de uma vingança coletiva, porque um dos jovens machos Gladis estava com um ferimento na cabeça no formato do que poderia ser uma hélice de embarcação. Então eles ficaram putaços e foram tirar satisfação.
Mas a mais aceita entre os cientistas é a de que as baleias só estariam interessadas no movimento daquele objeto também muito grande que chamamos de barco. E ao interagir com os barcos, as baleias perceberam que eles se moviam. Para fazer com que eles se movessem, elas interagiam. Seria uma grande brincadeira. Uma brincadeira de baleias.
A questão é que essa brincadeira afetou muitas pessoas. Mas as baleias não sabiam. Elas não tinham como saber. Elas não ficaram putaças. É porque a gente tende a encontrar comportamentos humanos em animais quando não achamos a solução para aquelas atitudes tão diferentes do que os seres humanos consideram o normal, o habitual. Elas não conseguem distinguir como causa e consequência o sofrimento. Um ferimento, seja ele no corpo ou no espírito. As jovens baleias da costa do atlântico só queriam brincar.
Se você acompanha a newsletter e leu a edição anterior, sabe que eu falei sobre cringe. A palavrinha que uma semana depois da publicação da carta estaria até mesmo nos jornas regionais e em releases terríveis de assessores de comunicação. Acho que tudo começou quando a Tchulim, uma famosa tuiteira, instigou os ânimos dos mais jovens, que rapidamente fizeram uma grande lista do que seria negativo para eles em quaisquer aspectos. A todo esse amplo conjunto denominaram cringe. Foi um termo ressuscitado e reconfigurado. Tudo virtualmente.
O que eu vejo de curioso nisso é que lá nos anos 30 ou 40 eles estarão mais ou menos com a minha idade se rebelando contra um futuro que sempre vem. Mas ao contrário de mim, que não tenho muitas lembranças virtuais para além da minha mais antiga foto do Facebook circa 2013, eles não terão tão facilmente o direito ao esquecimento de um passado estúpido. Eu não tive esse direito ampliado como os saudosistas dos anos 80, que guardam o passado apenas na memória. Eu ainda consigo acessar muitas memórias que me envergonham, ou conseguia há pouquíssimo tempo, e isso consumia qualquer sugestão de autoestima em que eu pudesse confiar. Essa sociedade da introspecção que a gente está construindo é talvez muito estruturada num narcisismo digital baseado em memórias eternas. Uma juventude eterna. Viver como uma jovem baleia do atlântico que rasga a cabeça para tentar brincar com um barco. Ou se vinga por um ferimento. Ou se vinga pelos peixes.
Quando ser jovem se tornou transgressor? Quando ser transgressor começou a ser produto? Ou tudo isso foi pensado para que a juventude se mantivesse dessa forma com um objetivo contrarrevolucionário.
Com carinho, deixo a manifestação pública da camarada Rafaela. Recomendo ler a sequência, este é um tuíte do meio.
.tchau
Escrever essa carta me traz coisas muito boas, como estar perto de vocês que leem e gostam de corresponder com suas opiniões e referências e aquilo que o texto o fez pensar. Que tal me responder com o que você achou da carta de hoje? É só responder esta carta como um e-mail normal.
Se você recebeu essa carta de um amigo, é muito bom poder entrar também na sua caixa de e-mail. Você pode transformar essa carta em uma correspondência regular, é só assinar. É de graça.
Se você já assina, eu agradeço de coração. Se você gosta dessa carta, envie ela para alguém. Para que eu continue sendo o Wing Costa e este alguém saiba também.